Terceira parte - circulações e medias
Uma estética da desprogramação: o Observatório da Literatura Digital Brasileira e a invenção de um outro mundo possível
Resumo
Registra-se aqui um percurso de pesquisa que leva ao inescapável encontro de questões epistemológicas e técnicas. Encontro bastante negligenciado nas humanidades, exceto nos estudos da edição, que permaneceram até há pouco como periferia ou vertente de outros campos. A criação do Observatório da Literatura Digital Brasileira ora descrita exigiu a constituição de um repositório; para estabelecer essa coleção, foi preciso entender de que taxonomia se tratava e, então, perceber que esses objetos culturais, típicos do tempo presente, ainda estão por ser delineados.Os instrumentos, as trilhas, a expedição #
No site intitulado Atlas - literatura digital brasileira, lê-se logo na abertura da aba “O projeto”:
O projeto de implantação do “Observatório da Literatura Digital Brasileira”1 teve início em fevereiro de 2018 e a sua primeira etapa (2019-2021) prevê a criação de um “Repositório da Literatura Digital Brasileira” (Projeto CNPq n. 405609/2018-3). O Repositório, a ser implantando em plataforma digital em software livre, deverá mapear, reunir, disponibilizar e preservar a produção literária digital brasileira. O Observatório alimentará de informações o repositório e, a partir do seu acervo, promoverá a reflexão crítica sobre essa produção, fomentará a criação literária digital e refletirá a respeito do seu lugar no contexto da literatura e do ensino de literatura no Brasil.2
O que é esse atlas que explica como a implantação de um observatório demanda a criação de um repositório? Navegando pelas abas do site, vamos vendo que se trata do registro das atividades de um grupo de pesquisa que, visando acompanhar uma produção que designa como “literatura digital brasileira”, precisa encontrar essa produção onde ela está e garantir que possa ser observada, estudada, para além de fruída ali onde eventualmente aparece. Interessante pensar nas implicações aqui estabelecidas: um observatório demanda a existência de um repositório, pois o que se quer observar é impermanente, como quase todo material disponibilizado digitalmente, e a instauração de um repositório exige, antes de mais nada, uma expedição pelas matas densas da circulação de textos no tempo presente. Isso nos leva à interessante problemática da definição de base: que produções serão entendidas como literatura digital? E esta pergunta leva, afinal, a pensar no que a literatura é, no que pode ser ou no que se diz que seja. Diante dessas questões, uma perspectiva sistêmica se impõe, e torna-se central a discussão sobre as materialidades em que os textos se inscrevem.
Dada essa contextualização, importa sublinhar isto: a construção do Observatório exigiu, antes de mais nada, que se produzisse o reconhecimento do que se designa por literatura digital e, a partir disso, que se possa reunir essa produção, que estava dispersa e, em boa medida, pouco acessível, sobretudo no que diz respeito a sua memória. Fato é que se documentou nesse Atlas o que foi encontrado por uma equipe que procurava obras brasileiras em repositórios já existentes e, a partir daí, seguia por nomes de autores, de equipes, indícios, indicações. Pontos nodais de uma típica rede de consagração literária, como lançamentos, prêmios e feiras, não serviam nessa jornada. Portanto, foi francamente exploratória a andança, e tanto a coleta quanto a estocagem exigiram essa abertura para a busca e também a criação de estratégias que dessem sustentação compreensiva a essa abertura, e não errática.
No caso da coleta, abriram-se trilhas a partir de um importante periódico, a Revista Texto Digital, editada desde 2004 na Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, e de coleções latino-americanas: a Cartografía de la Literatura Digital Latinoamericana, do Laboratorio Digital de la Facultad de Comunicación y Letras de la Universidad Diego Portales, Chile; a do Centro de Cultura Digital do México, com sua a Antología Lit(e)Lat, Antología de la literatura eletrónica lationamericana y caribeña; e a base da Electronic Literatura Organization (ELO), hoje sediada no Maryland Institute for Technology in the Humanities, Estados Unidos.
No caso da estocagem, depois de testes com diversos tipos de plataforma e toda uma discussão sobre código aberto ou software proprietário, sobre nuvem própria da universidade em que se desenvolve o projeto ou alocação em pacotes de manutenção privada, sobre os aplicativos necessários à fruição dos textos e também sobre a disponibilidade gratuita ou não das obras, estabeleceu-se a interação com o Projeto Tainacan, da Universidade de Brasília, que operacionaliza um plugin para wordpress específico para a criação de repositórios digitais.
Com o Atlas constituído – e sempre aberto a constituir-se, como sói ser com o universo da produção digital –, o Observatório afinal se instalou e tem hoje três vertentes de investigação em curso:
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a primeira vertente é de ordem teórico-metodológica: diante da quebra da homologação entre literatura e livro impresso, tão fortemente assentada, fica clara a necessidade de criação de uma terminologia que dê conta das especificidades da produção digital e também das formas de apropriação mais frequentes na estética digital do sul global, como se verá a seguir; as fichas de indexação das obras mostram de modo contundente a problemática taxonômica;
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a segunda vertente é de ordem técnica: questões de preservação e memória se põem aqui, entre as quais o fato de quase toda a literatura digital brasileira dos anos 1990 ter se produzido em flash, tecnologia que perdeu suporte técnico em dezembro de 2020, diante do quê se pôs o problema da conservação; e também o fato de que, na rede latino-americana de colaborações de que o Observatório faz parte hoje, constatou-se haver uma peculiaridade da literatura digital produzida no sul global, a saber, ela frequentemente é apropriação subversiva de plataformas e aplicativos em vez de desenvolvimento de uma linguagem de programação específica;
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a terceira vertente é de ordem jurídica e ética: diz respeito à autoria, uma vez que o regime de produção dessas obras – em copyright ou copyleft – supõe sempre uma equipe além do nome de autor que costuma figurar como central; aspectos sobre a montagem e a estocagem das obras levam a uma importante discussão sobre a diferença entre bancos de dados e acervo, considerando-se que, em ambiente digital, um não existe sem o outro, e sempre se faz necessária uma função de curadoria na gestão de ambos.
Como se pode depreender dessa descrição, as três vertentes de investigação se articulam, ainda que diferentes pesquisas se ocupem parcelarmente de seu desenvolvimento, e é essa articulação que nos tem levado ao entendimento de que se trata de observar, com base no mapeamento feito até aqui, como se delineia uma “estética da desprogramação”.
A invenção #
Quando se fala em “literatura digital”, é preciso diferenciá-la de “literatura digitalizada”. Trata-se de um trabalho que conecta indissoluvelmente línguas naturais e linguagens de programação, é nativamente digital – o que nos leva ao estudo do digital como constitutivo das obras, rompendo com uma tradição bastante assentada na Teoria Literária e em campos vizinhos, entre literatura e livro impresso. Disso decorrem problemas epistemológicos e terminológicos que ligam o tema a uma discussão mais ampla, sobre os objetos culturais em tempos de hiperdigitalização das práticas. No que concerne à reunião das obras, sua dispersão exigiu uma série de procedimentos técnicos que levaram à construção de um repositório, que gerou o que hoje se chama Atlas da Literatura Digital Brasileira, o acervo propriamente dito, com sua condição de incompletude receptiva, e todas as questões relativas à estocagem dessas obras, uma vez que aplicativos obsolescem, incompatibilizam-se, etc. Trata-se, portanto, de um trabalho em desenvolvimento, um work in progress. O projeto, como vimos, é o Observatório, mas há etapas para chegar a ele, e essas etapas devem ser cenografadas3, sob pena de perder-se o foco da publicização acadêmica, que é hoje um item de relevo na prestação de contas nas agências de fomento à pesquisa e nos sistemas de avaliação do conhecimento produzido nas universidades.
Diante disso, o termo “atlas” parece especialmente interessante como documento inicial da jornada, pois se sustenta numa cenografia de documentos de orientação que servem às viagens e a toda sorte de empreendimentos ligados ao conhecimento e à dominação de territórios, ou do estabelecimento de posições nos territórios mapeados. É o que pretende o Observatório da Literatura Digital Brasileira, como vimos, ao “alimentar de informações o Repositório” e, a partir desse acervo em permanente constituição, “promover a reflexão crítica sobre essa produção, fomentando a criação literária digital e refletindo a respeito do seu lugar no contexto da literatura e do ensino de literatura no Brasil”. Pretende delinear um “lugar”, firmado com vistas à participação ativa num campo, é um gesto desbravador e também de territorialização.
De saída, é um empreendimento exigente do estabelecimento da rubrica “literatura digital”, que procura referir uma totalidade de objetos de configurações bastante variadas, num ambiente técnico de distribuição dos dizeres que é historicamente recente, ainda pouco compreendido em suas peculiaridades, e que desfaz o casamento tão consagrado quanto não problematizado entre literatura e livro. A pesquisadora Rejane Rocha registra esse ponto na apresentação de um dos primeiros dossiês brasileiros sobre “literatura e novas mídias”, publicado em janeiro de 2016 em um importante periódico dos estudos da literatura brasileira contemporânea. Pergunta-se sobre
qual é a possibilidade de o que se compreende por literatura desde, pelo menos, o século XVIII, sobreviver como expressão cultural significativa e representativa nesse contexto caracterizado pela ubiquidade das mídias, pela transcodificação das linguagens em linguagem digital, pelas novas práticas de leitura que não mais se restringem à página impressa.
Não é simples responder a esse questionamento, dada a complexidade do fenômeno literário, que não se limita a injunções de ordem estética, que poderiam ser encontradas dentro dos limites que se desenham pela sua textualidade, mas envolve uma intricada rede de outros elementos que se articulam entre si, todos a suscitarem outros questionamentos: a produção (escrita, edição e publicação), a leitura, a circulação. O desafio é, então, compreender esse feixe complexo de elementos em um contexto em que escrever e publicar, ler e legitimar um texto como literário se faz no interior da ubiquidade das mídias, a partir da linguagem digital, em suportes de leitura eletrônicos (Rocha 2016, 13).
O entendimento do que seja o literário tem de enfrentar um “desafio”, precisamente o de compreender um “feixe complexo de elementos” constitutivos de um “interior”, o da “ubiquidade das mídias”, uma totalidade hiperabarcante. Os artigos do dossiê procuram justamente mostrar essa ubiquidade e suas implicações estéticas e éticas. Nos materiais analisados, atesta-se, entre outras coisas, que os gêneros discursivos, como ritos de cercamento dos sentidos e critério definidor dos materiais literários, dão lugar a obras de formatações suscetíveis de circulações imprevistas, difíceis de etiquetar.
É verdade que muitos textos literários consagrados ao longo do século XX vieram experimentando a explicitação das relações entre iconotexto, procedimentos de leitura ou fruição e rede de retomadas. As Vanguardas, o Modernismo, o romance de fluxo de consciência, os livros de autor, as performances autorais… são muitos os termos que, no regime discursivo literário, põem em relevo o problema da técnica, explicitam o modo como um texto se tece e se dá a ler. Em todo caso, o advento da internet e, nela, da web, onde tudo circula como cenografia multimodal que demanda engajamento do leitor, os objetos técnicos em que se inscrevem os discursos transformaram territórios relativamente estabilizados em terrenos movediços, em pântanos nos quais o próprio literário às vezes submerge.
É emblemático o caso da prolífica produção em flash, linguagem de programação que desde os anos 1990 alimentou tanto releituras do concretista Augusto de Campos4, quanto novidades como as do performer Arnaldo Antunes5, para citar dois nomes indiscutivelmente reconhecidos como produtores de uma literatura experimental que está na base de um movimento brasileiro de produção do poema-objeto, desprendido de uma origem que demanda reconhecimento e de um contexto-chave explicativo6.
O caso é que o buscador da Google, primeira das corporações a ser representada na sigla GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft), poderosa reunião das empresas que hoje dominam a arquitetura da web, descotinuou a possibilidade de leitura de textos em flash, substituindo essa tecnologia pelo HTML5 a partir de 2021. São variadas as consequências disso, e estão ligadas à dimensão técnica de transcodificação de linguagens, que, por sua vez, decorrem de certos valores, crenças e imaginários que dão sustentação a desenvolvimentos tecnológicos que prevalecem como desejáveis. Em face disso, vemos que:
As dificuldades encontradas na busca por uma definição de literatura digital são muitas; dizem respeito, entre outras coisas, ao fato de que literatura digital não concerne apenas a um gênero emergente, um tipo de texto ou um estilo autoral, mas, sim, a um sistema (cf. Even-Zohar 2017) que, embora mantenha vínculos teóricos e epistemológicos importantes com o sistema literário, a ele coloca não menos importantes questionamentos. Compreender a literatura digital como sistema significa considerá-la como fenômeno que reúne distintos fatores na sua constituição: o texto na sua materialidade inscricional e nos seus circuitos de circulação, mas também as relações entre produtores, consumidores, as instituições legitimadoras, o mercado e o repertório (ou repertórios) com os quais esse texto dialoga e no interior dos quais (bem ou mal) se acomoda. Todos esses fatores são atravessados pelas especificidades do contexto digital, que pressupõe outros modos de produção (de bens materiais e culturais) e outras subjetividades. A complexidade é redobrada ao levar-se em consideração a natureza liminar e experimental da literatura digital, cuja inespecificidade (Garramuño, 2014) é, ao mesmo tempo, motivo e resultado de suas fronteiras porosas, que exigem do analista uma abordagem multidisciplinar (Rocha 2021, 216).
Posta a técnica no coração do problema, fica claro que ela não é aplicação neutra, antes o contrário, é parte fundamental do engenho e da criação: a forma rizomática como seu funcionamento se dá nutre o solo em que se firma, numa retroalimentação. No caso da literatura digital, fica evidente a reciprocidade entre objetos técnicos em circulação e constituição do campo em que devem se legitimar. Assim, o Observatório, ao se produzir, produz também a legitimação do que observa.
No contato com as obras compiladas, constata-se que cada uma delas aponta antes para um nome de autor, performer ou artista (as designações variam) ou para um projeto cultural mais amplo (um festival, uma ocupação ou uma cenografia teatral) do que para uma instituição que publica ou abriga essas obras, um inventário institucional, alguma memória de filiação ou pretensão de linhagem. É o que se verifica no acervo alocado na aba Fortuna Crítica, do Atlas, uma outra compilação resultante do Projeto de Iniciação Científica (IC/SR-UFSCar) “Cartografia Crítica da Literatura Digital Brasileira”, desenvolvida por Gabriela Gritti, no qual são reunidos textos que falam de obras já catalogadas no repositório. Nas análises dessas obras que, nesse repositório, estão submetidas à rubrica literatura digital, vemos que são objetos pensados diversamente, e que a própria rubrica está em questão:
Tais dificuldades fazem-se sentir até mesmo na impossibilidade de adoção de uma terminologia única e variações podem ser observadas tanto no que diz respeito ao recorte temporal – p. e. o termo ciberliteratura, embora popular entre meados dos anos 90 e início dos anos 2000 é, atualmente, muito pouco empregado da bibliografia teórico-crítica sobre o assunto –, quanto no que diz respeito às regiões geográficas de onde provêm os estudos – p. e. no contexto norte-americano, adota-se o termo electronic literature (literatura eletrônica); no contexto francês, littérature numérique (literatura numérica); no contexto canadense francófono, littérature hypermédiatique (literatura hipermidiática); no contexto latino-americano tem se consolidado o termo literatura digital (Rocha 2020, 81).
Por isso, para observar a dinâmica sistêmica dessa literatura, era preciso coletar as obras e inventariá-las discutindo, ao mesmo tempo, a lógica de catalogação que institui esse inventário. E eis que, diante da profusão de definições tateantes, gestos acadêmicos ensejam a institucionalização. É emblemático disso o excerto do verbete Literatura Digital, no qual se convoca outro gesto, o de uma chamada:
Na chamada para um mapeamento colaborativo de literatura digital latino-americana, no âmbito dos projetos Cartografía Crítica de la Literatura Digital Latinoamericana (FONDECYT/UDP/Chile) e Repositório da Literatura Digital Brasileira (CNPq/UFSCar/Brasil), Carolina Gainza (2018) propõe a seguinte definição: “literatura digital pressupõe uma experimentação que pode utilizar tanto a linguagem de programação quanto os meios digitais. A experimentação com a linguagem do código se refere a uma escrita que transforma diferentes formatos em um mesmo código numérico e, portanto, permite aliar matéria verbal, imagens, vídeos e sons, o que, na grande maioria dos casos, resulta em textos não lineares. A experimentação com o meio se refere à utilização dos recursos da web e de suas plataformas para construir textos transmídias, multimídias ou intermídias (Rocha 2020, 83).
Essa chamada, com essa definição, retira do jogo algo que muito frequentemente se pensa: que a literatura produzida nas plataformas de autopublicação, os e-books e os blogs literários e congêneres sejam literatura digital por definição. Não são. Segundo os acervos mencionados acima e a rede conceitual que eles vão necessariamente estabelecendo em suas trocas e parcerias, consideram-se como literatura digital experimentações possíveis apenas nos meios digitais, a digitalidade é explorada como modo de dizer, não como um veículo de distribuição de textos que poderiam ser impressos ou declamados.
Isso é evidente no caso de boa parte da produção que compõe o acervo do ELO, por exemplo, onde vemos que nos EUA predominam desenvolvimentos técnicos com vistas a obter certos efeitos estéticos, os aplicativos são constitutivos dos dizeres desde sua concepção, como programação do projeto de dizer. Mas também contam as diversas formas de ocupação de aplicativos desenvolvidos para outros fins, na medida em que subvertem os usos programados ao explorar suas possibilidades para fins não previstos pelos criadores dos algoritmos que regem seu funcionamento. É o caso, por exemplo, de um romance que explora as caraterísticas do Twitter como plataforma, e não como um conjunto de micropostagens de textos literários num perfil pessoal do Twitter – por exemplo, Reviravolta (https://twitter.com/re_vira_volta), de André Lemos, que designa sua obra como twitteratura. É o caso, também, de uma obra que explora as possibilidades imagéticas do Instagram, como 2019naopassa, de @poetamenteinviavel (https://www.instagram.com/2019naopassa)), faz uma poesia que experimenta a função documental da plataforma. É o caso, ainda, de algo como o romance hipertextual Terminal, de Flávio Komatsu, que explora uma sucessão de circularidades randômicas ao desajustar a programação-default da plataforma blogger (https://t-e-r-m-i-n-a-l.blogspot.com).
A equipe do Atlas inventa o mundo da literatura digital ao organizar toda uma indexação para obras como estas. Sem os gestos consolidadores de uma rubrica, como a criação de um Observatório ou de um verbete enciclopédico, não há valores prontamente atribuíveis a essas obras, que permita um reconhecimento generalizado, não especializado, gerador de consumo e de mais produção. No verbete já referido, entende-se que a questão técnica é definidora inclusive das singularidades que demandam, entre outras coisas, uma metalinguagem adequada a apropriações distintas em diferentes conjunturas, decorrentes de diferentes condições de produção:
A definição proposta por Gainza [acima] tem o mérito de prever uma importante especificidade das criações digitais brasileiras recentes que podem ser analisadas à luz do que Leonardo Flores (2017) identifica como a 3ª. geração da literatura digital, aquela que se caracteriza pelo aproveitamento de interfaces já estabelecidas, caracterizadas pelo grande número de usuários, como as redes sociais, p. e. Isso porque, na definição da estudiosa, distinguem-se as obras que experimentam com o código, criando, simultaneamente à obra, a plataforma/programa que lhe dá formalização material, das obras que fazem uso de plataformas de uso massivo, que não foram criadas com finalidades estético/literárias, mas que são apropriadas e “desprogramadas” (Machado 2007) pelos autores que, ao fazê-lo, também reconfiguram os gêneros literários estabelecidos pela cultura impressa. A pertinência da distinção está relacionada com o fato de que em países em desenvolvimento, como o Brasil, em que a educação digital se dá informalmente e se limita ao uso das ferramentas, uma vez que a desigualdade no acesso a equipamentos e formação especializada é enorme, o não reconhecimento desse uso criativo inviabilizaria o reconhecimento de grande parte da produção literária digital desses países (Rocha 2020, 83/84).
A metalinguagem compilada no glossário do Atlas mostra a proeminência, no que talvez pudéssemos referir como países desenvolvidos, de um entendimento da literatura digital como aquela que cria a própria programação. Ao lado disso, constata-se que nos países ditos “em desenvolvimento” a “desprogramação” do que se oferece tecnicamente também deve ser considerada, e talvez sobretudo, sob pena de não se encontrarem as obras de literatura digital brasileira ou latino-americana, entre outras do sul global.
A ficha de indexação das obras no Atlas, que é o documento mais preciso na legitimação desses objetos digitais excluídos de todo pertencimento tradicionalmente institucionalizado, funcionou como um exercício de testagem desses critérios. Ao longo de dois anos, a ficha passou por várias configurações, conforme os pesquisadores iam observando o modo como circulam as obras, os interlocutores que encontram e os rumores que suscitam. Já em 2018, chamava-se ficha de mapeamento. Ainda não se punha como ficha catalográfica definitiva; seguindo a semântica exploratória do Altas, era um instrumento dos que desbravam. Há algo de heroico aí, hercúleo até: a insistente afinação de instrumentos para que sejam capazes de mapear e indexar os achados, para poder organizá-los e oferecê-los à fruição ou ao trabalho analítico, admitindo que são achados fugidios, que escapam a toda constância. Os itens da ficha na atual configuração são muito esclarecedores disso.
Os primeiros itens são Título e URL: é preciso localizar a obra no ciberespaço, ir até ela, fornecer seu endereço; não se trata de buscá-la numa livraria, por exemplo, nem de encomendar sua chegada por correios, mas de navegar até o preciso ponto que a localiza nas infovias, onde ela se dá a ler. E logo adiante a ficha prevê as marcações desse endereçamento no item Acessibilidade, no qual são possíveis as seguintes alternativas: Acessível, Não acessível, Gratuita, Não gratuita, além de um item aberto a inclusões – na ficha, há sempre espaços de registro abertos para o não previsto.
No que tange ao item Ano de Publicação, registre-se que se faz acompanhar de um outro que é Ano da última versão: são obras passíveis de refazimento, a impermanência de sua condição digital confronta a estabilidade dos textos impressos – sempre relativa, é verdade, marcada em reimpressões e edições, mas nunca pensada como nova “versão” de si mesma. Quanto à autoria, assume-se que há um Autor Principal e Colaboradores: as questões de autoria se desdobram quando se pensa que muitas vezes técnicos são contratados para viabilizar a criação. Também se prevê que haja uma Página Pessoal do Autor, o que remete a uma caraterística importante do tempo presente: a publicização de si como requisito para o pertencimento ao ambiente em que se conecta um nome de autor a uma dada obra.
Sublinhemos, ainda, que na extensa ficha predominam os itens que recolhem dados técnicos: Instruções de Leitura pelo Autor, Programa Usado pelo Autor, Dispositivos para Acessar a Obra, Processos de Leitura/Interação Leitor-Obra, Procedimentos de Composição, Sistema, Requisitos Técnicos, Tipo de Mídia, Formato da Obra… Os detalhamentos de cada um destes itens podem ser encontrados no Atlas, que partilha com seu público esse percurso sem fim, mostrando sua tentativa de ser compreensivo num movimento que, a cada mudança nos aplicativos, plataformas, sistemas…, remodelará essa ficha, que tenta capturar o movente.
Por fim, deve-se salientar um dado nesse conjunto de 29 itens que compõem a ficha de mapeamento, um item que aparece com uma interrogação: Gênero?. A produção digital tem seus quadros cênicos afrouxados, os pactos de leitura assentados em tipos e gêneros discursivos não são os já conhecidos, e a cenografia, as feições do texto propriamente, é hipertrofiada pelas possibilidades técnicas de uma iconotextualidade que se faz acompanhar de uma instrucionalidade a ela incorporada como estética, com vistas a propiciar uma experiência de leitura nas telas: a navegação. Nesse caso, não são as coerções genéricas que funcionam como constrições fortes – como se lê um poema, como se lê um romance, como se lê uma crônica humorística… –, é principalmente a formatação que orienta os expedientes de apreensão dos sentidos, trata-se de saber ler twitteratura, por exemplo.
Ao manter um item de indexação em questão, essa ficha assume um gesto interpretativo importante, define as obras conforme vê nelas parâmetros assumíveis, a partir dos quais se poderá continuar a expedição. Um fazer experimental, flexível e coletivo se desenha no modo como as obras e os instrumentos de estudo dessas obras se produzem (e não só se organizam) nesse Atlas.
E as articulações entre problemas fundamentais vão aparecendo: ao romper a homologação entre literatura e livro, esses objetos literários rompem também com a apaziguada correlação entre um nome de autor e um texto. No arquivo do Atlas até o momento, há 149 obras, a partir das quais se pode depreender que: i) 19% têm mais do que um criador declarado como tal; ii) 38% indicam a figura do colaborador como partícipe do processo de produção da obra; iii) 93% protegidas por copyright, embora a totalidade das obras desse percentual não identifique claramente esse regime de propriedade; iv) a grande maioria das obras reunidas até agora foi produzida por autores de uma única obra digital; v) estão a cargo do próprio autor a publicação e a manutenção de sua obra em site pessoal, custeado e mantido por sua própria iniciativa. Além disso, entrevistas realizadas com os autores, bem como pesquisas sobre as suas atividades profissionais, expuseram alguns aspectos importantes: i) muitos autores não se identificam como escritores de literatura, nem sequer identificam a sua produção como literária; ii) os autores não raro vinculam-se a campos como artes visuais, design e publicidade.
Embora esses dados sejam preliminares, apontam para uma configuração específica da autoria no interior do que se poderia identificar como um sistema da literatura digital e levantam questões como: quais são os limites entre autoria e colaboração? Como se configura o trabalho colaborativo em termos de engenho e de criação? De que maneira as especificidades dessas produções digitais rasuram as práticas e as noções consolidadas de autoria literária?
Se retomamos toda a tradição da autoria como origem – esotérica, mitológica ou como forja social, a depender das condições históricas em que se formula –, logo vemos que não se sustenta nesse sistema, tanto porque quase nunca se explicitam filiações intelectuais na obra mas, sim, nas redes de publicização que é preciso gerir como criador de obras; quanto porque quase sempre essas obras encenam sua condição de produção coletiva, dando a ver uma equipe que a programa ou uma desprogramação do que foi criado antes e alhures por outros, convocados à revelia talvez. Em qualquer dos casos, encena-se uma co-enunciação. Desmistifica-se, com isso, a autoria intransitiva (cf. Salgado 2020). Ser autor de literatura digital é ser autor de algo, o complemento é inescapavelmente descritivo da trama de criação, produção e consumo em que se constitui.
Um outro mundo possível #
Finalmente, a título de síntese, consideremos que
Se “[…] um meio é mais que um suporte físico, e se define pela superposição sempre em movimento e pela transformação das convenções artísticas que em determinados momentos históricos o delimitam” (Garramuño 2014, 86), a literatura digital, que se produz no meio digital, fazendo uso de suas potencialidades e exigindo do leitor outras práticas de leitura, e da crítica outros parâmetros de avaliação e valoração, coloca em questão não apenas os limites técnicos do meio, expandindo seu uso em direção a finalidades não originalmente previstas por ele, como também coloca em questão as linhas gerais dos gêneros literários, assim legitimados a partir das convenções, dos critérios e dos parâmetros construídos às expensas da cultura impressa (Rocha 2021, 232).
Foi nesses termos que procuramos mostrar como os gestos de pesquisa e análise se inventam ao inventariarem elementos que, assim reunidos, instauram o mundo que esses mesmos gestos estudam. Procuramos mostrar que, passando, então, a existir como um mundo apreensível, esse inventário inventado suscita questões jamais formuladas antes, ainda que possam servir para perscrutar o que veio antes. É o caso da relação com a técnica: no sul global – e contundentemente no caso brasileiro –, esse tipo de produção coincide com o que nos ambientes de culturas colaborativas não corporativas se tem designado por “gambiarra”: produto da astúcia engenhosa que faz do que já está posto um plano de voo para horizontes imprevistos; a criação se faz das restrições que supera ou transforma, é sublevação. De fato, uma estética que corresponde a uma ética, decorrente de atitudes que desarranjam ou rearranjam funcionamentos que constringiam.
Se considerarmos o que se convencionou chamar e-lit nos terrenos lindeiros desse tipo de produção com o que se vem chamando amplamente de Humanidades Digitais (HD), fica clara a força da produção literária como questionadora do que nas HD se põe como técnica neutra, útil a propósitos que lhe seriam externos. A literatura é sempre um experimento do que se diz no modo como se diz e, no caso da literatura digital, a língua explorada nas suas muitas possibilidades expressivas inclui as linguagens e os objetos técnicos com os quais ganha vida pública, ensejando interlocução. A literatura digital evidencia que não há neutralidade na técnica, na medida em que esta é desenvolvida nessa ou naquela direção e por isso permite, exige ou impede essa ou aquela forma de dizer. E é no Sul Global que a relação entre o estado das técnicas e o estado da política se põe contundentemente em relevo, quando, não havendo os meios para simplesmente aderir a um fazer que prescinde de discutir como se faz, alça a primeiro plano essa busca, descolonizando os modos digitais de dizer, destituindo o império digital de sua suposta prerrogativa de condução de todas as fabulações, jogando com os algoritmos dados, portanto dando a ver que os algoritmos jogam; não apenas executam, mas impõem uma forma de execução (Kosak 2021).
Essa questão está posta mesmo em regiões centrais do globo e, como foi dito, a pesquisa tem papel crucial no entendimento do que se passa e também na invenção do que pode vir a se passar. Na França, por exemplo, centro da República Mundial das Letras, esse “meridiano de Greenwich em relação ao qual se medem a novidade e a modernidade das obras” (Casanova 2002, 109), um empreendimento como o Projeto LIFRANUM (LIttératures FRAncophones NUMériques: identification, indexation et analyse des productions littéraires nativement numériques dans l’aire francofone) tem se dedicado tanto a considerar a produção francófona apontando regularidades e diferenças em um espaço de produção que refaz a consagrada relação literatura e nação, quanto a pôr em evidência o que nem sempre esteve na pauta da Teoria Literária: a cadeia criativa e a cadeia produtiva que constituem a mediação editorial. Nesse projeto, investiga-se, entre outras coisas, como os processos editoriais da literatura digital jogam luz sobre outros, os que com ele convivem e os que vieram antes, pondo em questão os suportes de inscrição e os meios de circulação do literário, o que renova profundamente a discussão sobre o valor literário, ao delinear uma perspectiva sistêmica na qual a técnica é o coração do problema.
Diante disso é que a gambiarra verificável na produção da América Latina configura um fazer desprogramador do que é oferecido pelas corporações de plataformas e aplicativos, erigindo uma marca do que podemos referir com os termos de Dénètem Touam Bona: trata-se de uma “cosmopoética do refúgio”, uma forma de marronagem que instaura na produção literária uma “resistência de modo menor”, isto é, “menos uma forma de conquista do que de subtração do poder”, feita de “táticas furtivas de des-captura” (2020, 62).
Referências #
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__________. 2021. “1,2,3, testando… Literatura digital no Brasil”. In Interfaces: literatura, artes e mídias, Soares et al (ed.), 214-234. Rio de Janeiro: Dialogarts.
__________. 2020. “Literatura digital” In Tarefas da edição - mediapedia, Cabral, Cleber e Ribeiro, Ana Elisa (orgs.), 80-84. Belo Horizonte: Impressões de Minas.
Salgado, Luciana Salazar. “Autoria: uma gestão de mitologias – devoção, reconhecimento, fama”. In Edição, livros e leitura no cinema, Gomes, Letícia (org), 181-198. Belo Horizonte: Contafios.
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O título faz alusão ao ideário que mobiliza diversos movimentos sociais desde o 1o. Fórum Social Mundial, em 2001, na cidade brasileira de Porto Alegre, cujo slogan era “Um outro mundo é possível”. ↩︎
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Projeto concebido e liderado pela Profa. Dra. Rejane C. Rocha no âmbito da linha de pesquisa Literatura, linguagens e meios, no Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura, da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Disponível em [https://atlasldigital.wordpress.com],último acesso 16 mai 2022. ↩︎
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O termo tem valor enunciativo aqui: a cenografia é o que resulta do contrato estabelecido no quadro cênico, isto é, um tipo de discurso é atualizado em gêneros discursivos socialmente pactuados. A cenografia é, portanto, o modo como um texto aparece para seu leitor, sempre condicionado pelo quadro cênico: com um dado tom, tratando de certos temas, mobilizando certos recursos retóricos. Segundo esse entendimento, os sentidos que se produzem num texto conectam inextrivacavelmente seu interior e seu exterior, não só ao contexto imediato de leitura, mas também ao modo como esse contexto radica historicamente na organização social que distribui os textos (Maingueneau 2006). ↩︎
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No site do poeta, essa história técnica está contundentemente registrada: [www.augustodecampos.com.br], último acesso 16 mai 2022. ↩︎
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No site do poeta, experimentos mais recentes se sobrepõem aos dos anos 1990, dos quais há rastros, o que acompanha a dinâmica de impermanência do ambiente digital, com suas sucessivas reconfigurações: [https://arnaldoantunes.com.br], último acesso 16 mai 2022. ↩︎
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“TENSÃO DE PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO/ puro movimento estrutural/ cibernética. o poema como um mecanismo, regulando-se a si próprio: ‘feedback’/ criar problemas exatos e resolvê-los em termos de linguagem sensível.” (excertos do Manifesto Concretista, disponível em [http://ml.virose.pt/], último acesso 16 mai 2022, grifos originais). ↩︎