Segunda parte - circulações intelectuais
Representações e vozes ameríndias: memória e historicidade do espaço das Américas
Resumo
Este artigo faz uma retrospectiva de nossa pesquisa, cujos temas principais são a articulação de obras literárias e representações sociais relacionadas, entre outras coisas, à construção de imaginários nacionais, questões de identidade, aos desafios da interculturalidade e à relação com a alteridade, as figurações do espaço contemporâneo (cidades, periferias, “não-lugares”) e questões ligadas à memória e à historicidade do espaço, com base em um corpus de obras brasileiras e quebequenses dos séculos XX e XXI. Nosso trabalho mais recente sobre a alteridade ameríndia e o imaginário do espaço nas Américas nos levou naturalmente a nos interessar pela produção literária autóctone. O estudo paralelo das representações literárias da alteridade ameríndia e da autorrepresentação das vozes ameríndias no Brasil e no Quebec nos permitiu explorar a relação entre americanidade e ameríndianidade, destacando a inclusão da produção literária autóctone em um processo contemporâneo de transculturalidade; essa produção, no entanto, não renuncia a uma reapropriação memorial do território geocultural dos ancestrais. Este artigo analisa textos literários alóctones e autóctones que questionam a memória escondida do território ou a memória ferida dos ameríndios e que se concentram no ressurgimento de suas memórias ancestrais e culturais.Perspectivas teóricas #
O estudo paralelo das representações literárias da alteridade ameríndia e da auto-representação de vozes ameríndias permite interrogar melhor a construção de uma topologia imaginária do espaço das Américas através de questões relacionadas à memória e à historicidade do espaço. Este tema de pesquisa se inspira nos trabalhos de história comparada das Américas de Gérard Bouchard (2002), assim como em contribuições de pesquisadores canadenses como Jean-François Côté, Jean Morisset, Patrick Imbert sobre o espaço intercontinental americano. Seguindo a abordagem desses trabalhos teóricos, os estudos que se propõem conectar as literaturas do Quebec e do Brasil se desenvolveram na década de 1990 no Brasil, em particular com as publicações da ABECAN (Associação Brasileira de Estudos Canadenses) e com as trabalhos pioneiros de Zilá Bernd (Bernd e Peterson 1992), Lícia Soares de Souza (2004), Eurídice Figueiredo (2013), entre outros. Esse caminho da aproximação continental se abre para fenômenos originários e migratórios e a uma reavaliação do passado histórico : é pela amerindianidade das obras literárias, que leva em consideração a experiência e o ponto de vista das populações ameríndias, que nos juntamos à perspectiva de americanidade, focada sobre a dimensão continental da imaginação espacial, para entender melhor as representações de identidade e as questões de coabitação entre as sociedades ameríndias e ocidentais. Esse conceito é fundamental para estudos comparativos Quebec-Brasil pois, de acordo com o sociólogo da UQAM Jean-François Côté, ele « se junta aos requisitos de uma representação hemisférica das Américas, cujo centro não pode ser encontrado em nenhum lugar, se não na concepção que nós mesmos criamos através das Américas percebidas segundo uma perspectiva cosmopolítica » (Côté 2011, 196).
Assim, aproximar essas experiências literárias privilegiando a produção contemporânea alóctone e autóctone, no Brasil e no Quebec, torna possível abrir histórias nacionais umas às outras para questionar as novas relações cosmopolíticas representadas, ao mesmo tempo em que colocam em foco a persistência da herança colonial e as estratégias de resistência poética e política, dentre as quais emerge um novo lugar de enunciação, o das literaturas ameríndias. Assim, pensar a americanidade tem por conseqüência, em nossa perspectiva de pesquisa, a inclusão do espaço da Abya Yala1, no intuito de contribuir a superar a invisibilização das populações ameríndias.
Embora os contextos históricos e sociopolíticos de Quebec e do Brasil sejam diferentes, essas nações compartilham uma herança comum, a saber, a colonialidade do poder que também implica, como aponta Aníbal Quijano, uma colonialidade do saber e do ser. A aproximação de suas experiências literárias não só permite paralelizar os processos de apagamento das memórias dos povos originários na construção de histórias nacionais, como também leva a revelar outras formas de estar no mundo e de vê-lo, por meio das produções literárias ameríndias. Também permite comparar as relações que os diferentes estados têm com os povos indígenas em termos de políticas culturais, educação, saúde, autonomia política e negociação jurídica, o que ajuda a esclarecer a complexidade de seus estatutos dentro de cada nação. Ao mesmo tempo, nossa perspectiva de pesquisa transnacional destaca projetos artísticos decoloniais dialogando com as lutas sociais realizadas pelos ameríndios do continente.
No centro de nossas preocupações, esse questionamento do imaginário do espaço do continente americano em relação às representações dos povos indígenas decorreu claramente do entrelaçamento entre história e memória, articulado à interpenetração entre tempo e espaço. As obras de Fernand Braudel e Gérard Bouchard ajudaram-nos a compreender a importância da dimensão temporal, inscrevendo a história num passado a longo prazo (Braudel 1985) para tentar apreender as reviravoltas de uma temporalidade complexa que inclui o tempo longo das estruturas geográficas e materiais (evolução das paisagens, história do homem em suas relações com o meio ambiente), o tempo da história social, as condições econômicas e os ciclos econômicos, bem como o tempo curto da história evenemencial. Num contexto marcado pela descolonização da História, a noção braudeliana de longa duração rompeu com a perceção unívoca da História e abriu as portas a memórias múltiplas, diferentes da memória oficial. O conceito de « memória longa » de Gérard Bouchard se inspira no pensamento de Braudel para propor um modelo sistêmico de uma história comparada da formação de consciências nacionais e identidades coletivas das « coletividades novas » das Américas. Esse quadro teórico fundamenta nossas análises de textos alóctones e autóctones que se abrem para as memórias confiscadas dos povos originários do continente americano.
O imaginário contemporâneo dos ameríndios nas nações brasileira e quebequense foi moldado por diferentes configurações de memória. No Brasil, esse processo se apoia no apagamento da memória do extermínio e no mito da miscigenação que contribuem para a invisibilidade do « índio ». Trata-se de um imaginário conciliador que se alimenta do mito da unidade social em relação à própria ideia de nação, como aponta Marilena Chauí (2000). Já no Quebec, a presença ameríndia no imaginário literário quebequense pode ser explicada pela situação ambivalente do processo histórico de fundação da nação quebequense, que foi simultânea e sucessivamente Nova-França, Canadá e Quebec. Segundo Bouchard, a estratégia memorial dominante na nação brasileira consiste em recusar a memória longa para se projetar em um futuro utópico enquanto prevalece a incerteza na consciência histórica quebequense (Bouchard 2002, 383).
Assim, rejeitar, adotar, escolher os antepassados participa dos jogos da memória. Para uma melhor compreensão dessas negociações memoriais nos atuais contextos brasileiro e quebequense, é importante levar em consideração, como aponta Bouchard, a disputa das memórias em ambientes marcados por uma diversidade étnica muito forte (Bouchard 2007, 339). Assim como a historiografia e a literatura, a geografia também mobiliza a construção de da memória longa, ao reivindicar territórios e paisagens em que evoluem os referentes identitários de diversas etnias.
Hoje em dia, testemunhamos esse processo em ação em muitas « coletividades novas » nas Américas, incluindo Brasil e Quebec. Observamos um esforço tanto da população afrodescendente quanto dos povos indígenas em « representificar » o que foi apagado do passado (Bernd 2021)2, em preencher os vazios da memória, produzindo discursos que se sobrepõem ao silêncio que esmagou a história desses povos durante séculos. É neste sentido que Zilá Bernd evoca uma literatura de reparação, uma literatura dedicada à « representificação » da ausência (Catroga 2015, 51) pela evocação de traços e de vestígios memoriais.
O despertar da estratégia da memória longa nessas comunidades transformou a forma de olhar o passado. A introdução de uma nova consciência histórica abriu outros caminhos para a construção de identidades coletivas que extrapolam inclusive as fronteiras nacionais, como os projetos epistêmicos e políticos das populações ameríndias e afrodescendentes (Mignolo 2007, 163). Essas populações se investem na elaboração de uma « contra-memória » que lhes confere legitimidade para lutar contra a espoliação material e simbólica em funcionamento há séculos. Percebe-se que a produção literária e os discursos dos movimentos sociais das etnias ameríndias e afrodescendentes têm, em sua maioria, aderido à estratégia da longa memória com o objetivo de se afirmarem como atores sociais e reivindicarem seu legítimo direito aos territórios físico e simbólico em diferentes nações do continente americano.
A memória espacial é onipresente na maioria dos textos. Para examinar o imaginário do espaço na literatura, com foco nas relações entre povos indígenas e sociedades ocidentais, nos inspiramos na política da espacialidade de Doreen Massey que considera o espaço como o produto de inter-relações que pressupõem a coexistência de trajetórias distintas ainda em construção, uma « coexistência contemporânea de Outros » (Massey 2013, 29). Para observar as imagens indígenas e ocidentais dos territórios compartilhados, recorremos às correlações entre « geografia do real » e « geografia do imaginário », seguindo os conceitos da geo-crítica (Westphal 2007, 183-240), bem como como aos trabalhos de William Cronon sobre a história do meio ambiente que questionam as forças na origem das modificações radicais da paisagem (Cronon 2016). Finalmente, as contribuições da antropologia para o estudo das cosmovisões ameríndias e a perspectiva crítica da « decolonialidade » constituem contribuições adicionais à fundamentação teórica que orienta nossas análises (Quijano 2010 ; Mignolo 2007 ; 2015).
Trata-se de uma perspectiva de pesquisa que é também « um convite para agir sobre os imaginários coletivos », examinando as relações que os textos literários estabelecem com o real ao se apropriarem das dimensões sociais, políticas, simbólicas e ontológicas do espaço das Américas – Brasil e Quebec – e os deslocamentos que elas provocam sobre os preconceitos das comunidades imaginárias nacionais (Bouchard 2002, 188).
No âmbito da produção de discursos sociais sobre os ameríndios, destacamos a contribuição específica da criação literária para a superação dos parâmetros dicotômicos e excludentes, característicos do imaginário social hegemônico das sociedades ocidentais sobre esses povos. As histórias e coleções de poemas que escolhemos estudar desafiam a redefinição das fronteiras políticas ao mesmo tempo em que destacam os aspectos geopolíticos e culturais do processo de transformação das territorialidades nativas. Eles testemunham as estruturas profundas que conectam os povos originários ao seu território e revelam a memória enterrada da experiência vivida pelas comunidades.
Memória e historicidade do espaço: a memória longa #
Num contexto de confronto simbólico de memórias, diversas obras alóctones e autóctones adotam uma atitude de inclusão da história dos primeiros povos das Américas em um passado a longo prazo. Esses textos tocam de fato a questão da memória e da topologia imaginária do continente americano ao questionar « o espaço perdido atrás do mapa », expressão usada por Jean Morisset, escritor-geógrafo canadense, para evocar a memória soterrada do território do Canadá e, por extensão, das Américas. Os poemas reunidos em sua coletânea Chants polaires [Cantos polares] (2002) estabelecem uma ordem simbólica baseada na representação de um espaço ilimitado, em sintonia com uma dimensão temporal de duração muito longa que remonta a tempos imemoriais, recorrendo assim a uma estratégia de descentração do ponto de vista histórico ocidental. O escritor perscruta um passado geológico distante – « os arquivos da natureza » – segundo suas próprias palavras, o que reforça sua percepção de uma geografia inseparável da história. Para se apropriar da visão de mundo dos Inuítes do Extremo Norte canadense, Morisset adota uma abordagem interiorizada da apreensão do espaço que acaba derrubando os preconceitos que alimentam o imaginário ocidental sobre esse território e seus habitantes. Suas histórias e poemas testemunham a resistência dos povos originários e as relações que estabelecem com o sistema geofísico ; ao despertarem a sua memória ancestral, apelam a uma expansão in illo tempore e suscitam um questionamento metafísico do ser humano e da sua relação com o mundo.
A mesma abordagem de inscrição da história em um passado de longa duração é adotada pelo escritor Daniel Munduruku em seu romance O Karaíba. Uma história do pré-Brasil [ Le Karaïba. Une histoire du pré-Brésil] (2010). Nascido em Belém do Pará em 1964, é autor de um primeiro romance, Todas as coisas são pequenas [Toutes les choses sont petites] (2008), e talvez o escritor de origem ameríndia mais conhecido no Brasil por seu investimento na divulgação das culturas dos povos originários e de sua produção prolífica, que visa preservar o patrimônio cultural indígena e divulgá-lo para um público amplo. Em Karaíba, Daniel Munduruku apela à memória da « pré-história » do Brasil para romper com uma figuração que faz coincidir a origem da história do território brasileiro com a chegada dos colonizadores. O romance se alimenta da memória ancestral, a memória dos antepassados homenageados pela história, para retraçar o modo de vida das etnias indígenas. A sua elaboração, porém, exigiu do autor que ele se dedicasse a pesquisas para reconstituir os vestígios sobre os rituais, o papel da guerra, as tradições, as lendas e os hábitos cotidianos de diferentes povos originários da era pré-cabralina. Neste romance, que é um belo exemplo de uma literatura de reparação (Bernd 2021), a imaginação preenche o vazio, a ficção se contrói com o objetivo de « representificar » a ausência.
Preencher as lacunas da memória #
Outras obras evocam a dimensão de historicidade ao estabelecer conexões entre a memória apagada da história local, territorializada, e a experiência – compartilhada pelos ameríndios do continente americano – da espoliação e da imposição de formas de organização territorial desde a colonização. Seu objetivo é abalar o imaginário colonizado a partir de vestígios históricos e memoriais que a literatura traz à tona e transfigura. Ancorados em experiências históricas locais de determinadas regiões do sertão brasileiro e quebequense, esses textos tecem elos entre história, memória e identidade cultural.
A estratégia da historicidade do espaço visa preencher as lacunas da memória histórica e atualizar a imaginação do passado (Bouju 2015)3. Em alguns textos, o escritor assume o papel de historiador quando se propõe a vasculhar os arquivos da história regional, apagados da história do continente americano. A obra literária ilumina, assim, a memória soterrada. A adoção de uma perspectiva histórica de longo prazo enfatiza a existência de uma territorialidade indígena originária ao mesmo tempo em que revela o contexto colonial de apropriação territorial e transformação ambiental. Esta é a escolha feita por Maria José Silveira em Guerra no coração do cerrado, e por Gérard Bouchard em Mistouk e Pikauba.
O resgate da memória da ocupação do território expõe em plena luz a violência da política colonial indigenista e a perpetuação do colonialismo interno sobre os povos indígenas, como se pode ler na encenação dos sucessivos massacres perpetrados contra os Cayapós, em Guerra no coração do cerrado, que denuncia o processo de extermínio dos ameríndios subjacente ao projeto de fundação da nação. Em Mistouk e Pikauba, Bouchard considera o processo de desapropriação territorial dos Innus apoiando-se mais na história ambiental da região de Saguenay e tomando como base as divergências entre os imaginários sociais alóctone e autóctone do território.
Além disso, também nos debruçamos sobre obras que observam a história recente, denunciando as transformações abruptas impostas aos territórios ameríndios pelas políticas indigenistas vigentes no século XX. Elas expõem o caráter arbitrário e violento dessas leis e de suas conseqüências traumáticas para as comunidades ameríndias. Ao fazê-lo, rompem com a unicidade do discurso oficial que busca legitimar as ações de um poder hegemônico recorrendo à lógica da expansão territorial civilizatória. Os textos literários introduzem uma outra perspectiva que leva em conta a experiência de violência, do racismo e da exclusão sofrida pelos Povos Primitivos.
É o que pudemos observar nas obras de Jorge Amado, Antonio Callado e Márcio Souza, cuja historicidade do espaço é orientada para a temporalidade do século XX e os contextos repressivos da ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) e da ditadura militar (1964-1985).
Essas imagens espaciais associadas ao tema da terra são compartilhadas por escritores alóctones e autóctones no Brasil e no Quebec, e integram a experiência histórica das Américas. Evocam histórias locais ao mesmo tempo em que denunciam a violência do modelo hegemônico ocidental baseado na ideologia do desenvolvimento e do progresso que sustenta a lógica da expansão territorial civilizatória. Estas obras ajudam a derrubar um certo imaginário dos confins, subjacente ao projeto colonial e à dinâmica espacial expansionista do modelo de desenvolvimento industrial capitalista globalizado.
A imposição de modelos organizacionais ocidentais também é alvo do olhar crítico de Gérard Bouchard em seu terceiro romance, Uashat, cujo título se refere ao espaço referencial da reserva de mesmo nome, localizada na Costa Norte do Quebec. Nesta história, o autor problematiza a perda dos territórios tradicionais que obriga os ameríndios a viverem nos espaços confinados das reservas ou na periferia das cidades, evocando a difícil convivência com os não-ameríndios. A reserva é retratada como um não-lugar, marcada pela precariedade material e simbólica, assim como as reservas e acampamentos de índios Guarani à beira da estrada no romance de Paulo Scott, Habitante irreal.
A memória cultural ameríndia: transmissão, ressurgência, resistência #
A busca pela interação de várias perspectivas culturais é ilustrada pelo livro La chute du ciel [A queda do céu] (2010), do xamã Yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert4. Esta obra faz parte de um conjunto de criações artísticas, textos literários e testemunhos militantes que buscam expressar novas sensibilidades e garantir o reconhecimento das culturas ameríndias. Essas diversas expressões lutam pela consolidação de uma visibilidade étnica, de modo a colocar em jogo fenômenos capazes de romper a hegemonia da cosmologia ocidental ao introduzir novas práticas cognitivas.
O projeto do livro é uma estratégia utilizada por Kopenawa para transmitir à sociedade ocidental a memória cultural étnica Yanomami e, assim, tirá-la da ignorância que demonstra em relação ao seu povo. A abordagem é didática e política : apresentar e explicar aspectos históricos e culturais dos Yanomami, enfatizando a imagem alterada que os ocidentais têm deles ; colaborar para a mudança de comportamentos que levam à destruição do território e do povo Yanomami. A narrativa de Kopenawa convoca elementos da memória cultural (fundamentos da cosmologia Yanomami, que apela à lembrança fundadora) e da memória comunicacional ao lançar luz sobre o passado e o presente recente dos Yanomami (acontecimentos relacionados ao « mau encontro » com os brancos que participam, entre outras coisas, da lembrança biográfica)5. As bases da cultura ancestral orientam a percepção e a relação que este povo estabelece com a realidade ; dão sentido à sua existência e determinam o seu modo de ser e existir.
Escritas da memória em textos de autoras ameríndias #
A adoção da escrita como meio de transmissão do patrimônio cultural é uma tática fundamental dos ameríndios para estabelecer um diálogo com a cultura hegemônica e se afirmar como sujeito de sua própria história, indo além do controle da epistemologia ocidental sobre seu conhecimento e sua subjetividade.
Em estudos que realizamos mais recentemente, queríamos estender a perspectiva pan-americana ao estudo de textos escritos por mulheres nativas americanas. Este projeto justifica-se não somente porque suas vozes ocupam o primeiro plano da cena literária no Brasil e no Quebec, mas também porque integram às reflexões sobre as transformações identitárias e culturais das sociedades em contato, um questionamento sobre sua inclusão enquanto mulheres em ambas as sociedades. A interseção da etnicidade e do gênero constitui novas versões da memória coletiva (Figueiredo 2013, 154).
Partimos da constatação de que as atuais criações literárias e artísticas indígenas atuais no Brasil e no Quebec são atravessadas pela emergência de vozes femininas cujas obras carregam sua subjetividade feminina e um desejo de emancipação social e literária. Ao fazer parte de um processo contemporâneo de transculturalidade, a literatura ameríndia surge como um lugar utópico de sobrevivência e resistência, mas também de mediação que faz nascer formas originais de expressão artística, sem renunciar a uma reapropriação memorial do território geocultural dos ancestrais. A voz das mulheres indígenas está no primeiro plano desse processo. As escritoras ocupam posição de vanguarda nessa produção desde a década de 1970 – quando An Antane Kapesh, no Quebec, e Eliane Potiguara, no Brasil, produziram seus primeiros textos, respectivamente, Je suis une maudite sauvagesse [ Eu sou uma selvagem maldita] (1976) e o poema « Identidade indígena » (1975).
Essas duas escritoras inauguram por meio de sua escrita-práxis a inserção de vozes de mulheres indígenas no sistema literário do Quebec e do Brasil. A escrita é vista como um espaço político de resistência e auto-reconstrução ontológica e antropológica que busca entrelaçar « auto-histórias » (a história vivida pessoalmente) com a violência e o trauma da história coletiva dos ameríndios.
Memória ancestral e atualização da tradição #
Uma das principais temáticas exploradas pelas obras que compõem o nosso corpus apela à transmissão da memória ancestral e ao papel determinante que as mulheres desempenham nesse processo de atualização do saber dos povos indígenas, como a história « As histórias que ouvi da minha avó e o que aprendi com elas » de Márcia Nunes Maciel (2014). Graça Graúna evoca uma imagem muito eloquente para traduzir sua visão sobre/da produção literária indígena : « A literatura indígena é uma canoa na contemporaneidade6 ». Consideradas antes como uma continuação da tradição oral, como um colar feito de múltiplas histórias e diversas etnias7, as literaturas ameríndias se dedicam a questionar as realidades indígenas contemporâneas, inserindo-as em uma perspectiva histórica de longo prazo.
Nós nos interessamos pela contra-memória que emana destes textos perscrutando a singularidade do mecanismo de transmissão da memória familiar e geracional. A reapropriação memorial dos referentes culturais ameríndios (a « memória cultural », inscrita no tempo de longa duração) encena outro fenômeno, o da reterritorialização simbólica que a escrita busca estabelecer ao apropriar-se da memória de seu patrimônio ancestral para criar seu próprio habitat. Assim, a produção literária das mulheres indígenas coloca a seguinte questão : como se reconstruir culturalmente e reativar sua herança étnica, após séculos de esquecimento ?
Outro aspecto fundamental da produção literária de mulheres ameríndias diz respeito ao cruzamento entre a memória do território nativo e as paisagens urbanas, muito presentes nas obras da nova geração. É o caso da poesia de Márcia Kambeba e Natasha Kanapé Fontaine ou ainda do conto Kuessipan, à toi (2011) de Naomi Fontaine. Em nosso trabalho, a relação dos ameríndios com o espaço urbano e os territórios nativos constitui outra perspectiva analítica, tendo em vista a complexidade das representações que dizem respeito : ao processo de interação entre a dimensão espacial e o ser humano ; práticas de espaço e paisagens ; a relação com as mudanças paisagísticas e com as mobilidades forçadas, encenadas pelos narradores ou sujeitos poéticos, que essas paisagens remetam ao espaço urbano ou a territórios culturais tradicionais.
Sem obliterar conflitos, crises ou mesmo traumas, as literaturas ameríndias do Quebec e do Brasil encenam processos de articulação dos espaços que permitem a circulação e a (re)contextualização de experiências e culturas singulares : memória da ancestralidade, memória de traumas, formas de integração social de ameríndios no presente, perspectivas de futuro, busca de interlocução com as sociedades nacionais. A emergência de memórias indígenas subterrâneas na contemporaneidade introduz paradigmas decoloniais ao quebrar o monólogo ocidental e ao enfatizar a coexistência e simultaneidade dos conhecimentos (Mignolo 2007, 24-25).
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Alusão ao título de uma conferência proferida por Zilá Bernd, inspirada em partes na obra de Fernando Catroga, intitulada « Représentification des effacements du passé. Littérature de réparation », em um colóquio internacional organizado pela Université Bordeaux Montaigne, dia 9 de Abril de 2021. ↩︎
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Modelo que, segundo Emmanuel Bouju, corresponde à metaficção historiográfica. ↩︎
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Remeto o leitor ao nosso artigo : Godet, Rita. 2018. « Transmission de la mémoire culturelle du peuple yanomami : la contribution de Davi Kopenawa ». In La renaissance des cultures autochtones : enjeux et défis de la reconnaissance, Côté, Jean-François e Cyr, Claudine (dir.), 61-81. Quebec : Presses de l’Université Laval, Collection Americana. ↩︎
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Ver Assmann, Aleida. 2011. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas/SP, Editora da Unicamp; Assman, Jan. 2012. La mémoire culturelle. Paris : Aubier. Para esses teóricos, a memória coletiva corresponderia a dois quadros de memória : a memória comunicacional (que diz respeito ao passado recente, à lembrança biográfica) e a memória cultural (que diz respeito à lembrança fundadora, rituais, danças, mitos, etc.). ↩︎
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Palavras de Graça Graúna durante sua participação em uma mesa redonda sobre as vozes ameríndias da descolonização que organizamos no âmbito do Congresso da ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada – Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Agosto de 2018. ↩︎
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Referência à imagem poética trabalhada no poema « Canción peregrina » de Graça Graúna, Tear da palavra, 2007, 11-12. ↩︎