Colonialismos e Colonialidades

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Segunda parte - circulações intelectuais

“Os galhos pelados da caatinga rala”: Graciliano e(in)screve o Brasil na França (1956-1998)

Resumo Discute-se neste texto como a escrita de Graciliano Ramos sobre o Brasil foi inscrita na França. Dessa forma, ele se encontra dividido em três partes. Na primeira, contextualiza-se o panorama do pós-Segunda Guerra, quando se iniciaram diversas políticas culturais que visaram reestabelecer laços entre a Europa Ocidental e o agora chamado Sul Global. A ponte literária da tradução foi uma dessas ações que objetivaram a paz entre os povos, mas que, além de compartilhar experiências estéticas distintas, também reproduziram perspectivas subalternizantes e fetichizadas sobre este Sul. Na segunda parte analisa-se como as traduções de Graciliano Ramos na La Croix du Sud, projeto editorial da Gallimard, liderado por Roger Caillois, reforçaram o estigma de injustiça, miséria e fome sobre o Brasil. Já na terceira, discute-se a consagração de Graciliano Ramos a partir da ampliação de seu legado editorial, difundido pela coleção Du Monde Entier da Gallimard, e da presença de Vidas Secas nos debates do campo intelectual francês. Por fim, defende-se que o binômio do título levanta reflexões sobre as relações assimétricas entre o Norte e o Sul da República das Letras e das subalternidades contemporâneas.

Pontes literárias Norte-Sul: entre paz, miséria e relações antípodas #

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, evento que levara as sociedades europeias ao abismo social, econômico e político, há uma reativação, rápida e intensa, de vínculos entre os países europeus com os países de diferentes continentes. O caso da França com a América Latina é ilustre pelo reestabelecimento dos intercâmbios políticos e econômicos, com a retomada dos programas de cooperação iniciados na década de 1930, e a reinvenção dos emblemas da latinidade, com a ambição de aprofundar as relações atlânticas, assentadas em estruturas institucionais e políticas que promovessem um campo cultural “latino-americano propriamente francês” (Guerrero 2018, 201-202).

Há o avanço da produção científica através da fundação de centros de pesquisas – como o Institut Français d’Amérique latine (IFAL), aberto primeiro no México, em 1944, e depois no Chile, em 1947; o Centro Francés de Estudios Andinos (IFEA), no Peru, em 1948; o Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL), entre outras entidades que aspiravam a produzir saberes próprios, a partir e sobre a América Latina, sem passar pelo crivo norte-americano ou britânico (idem).

Além das instituições voltadas para uma reflexão sobre a América Latina, avançou, de forma mais circunscrita, a maior visibilidade do Brasil na França, como aponta Ian Merkel. Como resultado do trabalho de intelectuais franceses retornados de suas experiências brasileiras, principalmente na Universidade de São Paulo, há um crescimento dos estudos sobre o Brasil. No Collège de France, na recém-fundada 6ª seção da Escola Prática de Estudos Superiores (antecessora da EHESS), no Musée de l’Homme, e na Revista dos Annales, diversos intelectuais tornaram o Brasil foco de suas análises (Merkel 2022, 134). Foi exatamente nesse momento que, como aponta ainda Merkel, Paul Rivet e Paulo Duarte, com outros importantes intelectuais franceses, inauguraram um novo centro no Musée de l’Homme chamado Institut Français des Hautes Études Brésiliennes (idem, 136).

Esse movimento intelectual também discorreu pelas “veias abertas literárias”, porém, sob programas e objetivos distintos. A United Nations Educational, Scientific and Cultural Organizations (UNESCO), fundada como um dos órgãos principais da Nations Unies (ONU) para promover a paz, a democracia e a compreensão entre os povos, lançou, em 1948, um programa de difusão das culturas e conhecimentos não-ocidentais, chamado “Collection d’Œuvres Représentives” (Furtado 2019).

O programa incentivou que editores e impressores começassem a tradução de clássicos e de trabalhos mais recentes da Ásia e da América Latina, ampliando o mercado de tradução europeu voltado para outras regiões, embora não tenha coberto áreas periféricas, como a África subsaariana (Sapiro 2020).

Diante das assimetrias relacionadas às publicações, as discussões se ampliaram. A partir do discurso do ex-presidente do Senegal Léopold Sédar Senghor à Unesco em 1981, no qual propôs o fortalecimento da conservação, do tratamento e da transmissão de manuscritos modernos da América Latina, Caribe e África, iniciada anteriormente pela “Association des amis de Miguel Angel Asturias”, em 1974, uma série de edições críticas passaria a ter por função desfolclorizar, desprovincializar e descolonizar o olhar sobre a cultura e os povos latino-americanos e caribenhos.

Desse modo, os Archives de la littérature latinoaméricaine et africaine du XXe siècle surgiram na década de 1980 com a tarefa de conservar, tratar e divulgar os manuscritos modernos e difundir obras com análises textuais e contextuais de autores das regiões subrepresentadas nas Œuvres Représentives. Mais especificamente, subsidiado numa cooperação entre França, Itália, Espanha, Portugal, Argentina, Brasil, Colômbia e México, além de um fundo da UNESCO, a proposta dos Archives era publicar 110 livros latino-americanos em 10 anos, e os distribuir em 22 países, da América do Sul, da América Central e do Caribe. Em suma, o programa da coleção consistiria tanto em atender as esperanças globais de uma paz duradora depositadas no hemisfério Austral, quanto superar o entendimento da literatura restrita à nação, formando assim um campo transnacional literário, centrado preferencialmente na América Latina e na África.

Contudo, houve atraso nas publicações e mudanças de algumas obras do plano inicial, realizado em maio de 1983, quando o comitê científico dos Archives decidiu os títulos a serem publicados. Entre as obras brasileiras, listavam-se, naquele momento: “Macunaíma”, de Mário de Andrade; “Libertinagem”, de Manuel Bandeira; “Os Sertões”, de Euclides da Cunha; “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa; “Fogo Morto”, de José Lins do Rego; “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector; “Contos”, de Machado de Assis; “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos; “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio Cardoso; “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antônio de Almeida; “Manifestos e Poesia”, de Oswald de Andrade e “Novelas”, de Lima Barreto.

Tudo indica que os títulos de literatura brasileira foram decididos exclusivamente por Antonio Candido e Celso Cunha, os únicos brasileiros desse comitê internacional de 1983. É importante destacar que temáticas centrais, caras às interpretações literárias brasileiras, como as que se referem às chamadas “cores locais”, tais como as desigualdades sociais, os poderes das elites locais e nacionais, a seca, a fome e a violência foram priorizadas sob perspectivas estéticas variadas. Considerando as problemáticas artisticamente trabalhadas, seria, talvez, possível supor que os títulos brasileiros selecionados eram representações fetichizadas da miséria, não apenas do país.

Com efeito, a subalternidade, herança das dinâmicas entre colonialismos e colonialidades (Cahen 2018), era um dos pontos sensíveis para a reconstrução desse mundo pós-guerra. Podia-se supor que o exótico Sul, com seus problemas sociais e políticos e com sua pluralidade cultural, contribuiria para minimizar o desconhecimento do Norte sobre esta região, ao mesmo tempo em que permitiria o avanço de sua perspectiva de antípoda, como sugere Lévi-Strauss1.

Nesse sentido, este texto indaga sobre os significados das pontes erguidas entre a literatura latino-americana e os produtos editoriais elaborados por franceses, centrando-se especificamente na seleção do título de Graciliano Ramos escolhido para compor o projeto editorial. Esse título aponta para um binômio que sintetiza, em grande medida, um olhar de longa duração da França sobre o Brasil: “Vidas Secas”. Porém, o título que ganhou o volume após a tradução é ainda mais representativo deste olhar: “Sécheresse”. Exclui-se o binômio, extrai-se qualquer referência à vida. Na visão do empreendimento editorial francês, resta apenas a seca, “galhos pelados da caatinga rala” e personagens como Fabiano, que “encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra”.

Esta não foi, contudo, a primeira vez que a obra de Graciliano Ramos ganhou o foco dos editores franceses. Desde os anos 1950, os livros deste autor vinham sendo traduzidos na França, primeiramente numa coleção da Gallimard voltada exclusivamente para intelectuais da América Latina, intitulada La Croix du Sud.

La Croix du Sud, Graciliano e o “aprendizado da injustiça” #

“Aprendizado da injustiça”. Foi esta a expressão utilizada por Roger Bastide para referir-se à obra de Graciliano Ramos em texto publicado por ocasião da reedição das obras completas do romancista, pela José Olympio Editora, em 1957. Ao tratar do título “Infância”, Bastide assim sentenciou sobre a obra. Essa definição pode ser considerada, seguramente, uma das mais precisas formas de ilustrar a escolha dos títulos de autores brasileiro incluídos pela Editora Gallimard na coleção La Croix du Sud.

Esta coleção teve como objetivo reunir o cânone intelectual de diversos países latino-americanos, sob a direção do intelectual francês Roger Caillois que, no momento da inauguração do empreendimento editorial, vinha de uma estadia de cinco anos em Buenos Aires, onde viveu, inicialmente, a convite de sua amiga Vitória Ocampo (1890- 1979). Essa permanência no continente latino-americano o havia posto em contato com diversos intelectuais da região. Ao retornar à sua terra natal, em 1948, Caillois assumiu um posto na UNESCO, onde sua função era difundir a literatura da América Latina na Europa junto ao já citado programa d’Œuvres Représentatives, por meio da direção da subsérie Ibéro-Américaine.

Porém, mesmo antes de iniciar o trabalho na UNESCO, Caillois havia assinado, em 1945, um contrato com a editora Gallimard para dirigir uma coleção de livros de autores latino-americanos, justamente o projeto intitulado La Croix du Sud. Os termos do acordo garantiam exclusividade para a editora e determinavam que deveria haver, ao menos, a impressão de quatro títulos por ano (Mérian 2014, 4).

A casa editorial parisiense era ideal para a publicação de um empreendimento como esse, pois correspondia a uma das empresas que melhor encarnava certa vocação internacionalista. Seu catálogo havia sido concebido, desde o início, em uma perspectiva cujo intuito era se transformar numa biblioteca universal, o que fez com que a editora criasse, já em 1931, a coleção intitulada Du Monde Entier, que tinha como objetivo “oferecer aos leitores a possibilidade de aceder a uma cartografia continuamente atualizada e ampliada da literatura mundial”. Assim, a Gallimard manifestava uma clara posição de difusora das literaturas de todo o globo, o que ganhou ainda maior destaque no imediato pós-Segunda Guerra (Venâncio e Furtado 2020), quando o “aprendizado da injustiça”, desenvolvido a partir de objetos e temas latino-americanos, teria se tornado útil aos europeus, em sua busca do (re)conhecimento do “outro”, ou seja, a compreensão das experiências de variados povos, em múltiplas regiões do planeta.

Foi justamente no “rescaldo do confronto cruel da Segunda Guerra Mundial e no contexto do surgimento da Guerra Fria” (Dimas 2020, 18) que os livros de Graciliano Ramos foram publicados na La Croix du Sud.

O primeiro título do autor na coleção foi “Infância”, publicado em 1956. Com versão para língua francesa assinada por Gougenheim, o volume que ganhou em seu título a tradução literal “Enfance”, foi prefaciado pelo próprio tradutor que o apresentou como um livro que, “ao lado de traços tipicamente brasileiros”(Gougenheim 1956, 8), possuía um “poderoso interesse humano” (idem). Ao longo do prefácio, o autor buscava apontar o vigor e a importância da narrativa de Graciliano, ao mesmo tempo em que pretendia universalizar o impacto de sua escrita.

Desse modo, o prefaciador fazia questão de afirmar que o texto original havia sido publicado numa coleção de biografias, editadas no Brasil pela José Olympio, na qual o texto de Graciliano era o único de um autor brasileiro a figurar ao lado de autobiografias de Renan, Goethe, Saint-Simon e Tolstoi. Com esse breve comentário inicial no prefácio, Gougenheim colocava Graciliano Ramos ao lado de nomes universalmente conhecidos e sublinhava a importância da publicação da Gallimard.

Porém, o mais importante da reflexão do prefaciador, vinha imediatamente após a apresentação do autor. Ele argumentava que o leitor encontraria naquela narrativa ambientada no nordeste brasileiro – onde havia uma forte miscigenação étnica – traços das experiências de Graciliano que poderiam ser comparados a de outros grandes escritores e de seus personagens. E finalizava afirmando que “Graciliano Ramos vale por si só, como pintor de costumes e como observador da alma humana” (Gougenheim 1956, 8). Estava, assim, enunciada a capacidade de Graciliano em narrar a natureza humana, e do homem brasileiro, nordestino e sofrido, além de representar o padecimento de toda a humanidade. Constituía-se, dessa forma, o “aprendizado da injustiça”, do qual falava Bastide.

O segundo livro de Graciliano Ramos que foi publicado na coleção La Croix du Sud viria, justamente, para ratificar essa interpretação. “Vidas Secas”, que recebeu o título francês de Sécheresse, foi publicado em 1964, e teve tradução de Marie-Claude Roussel. Diferentemente do volume anterior, o prefácio não está assinado, ganhando o título de note liminaire, o que denota sua brevidade e, talvez, superficialidade. A nota, realmente curta, apresenta uma ligeira biografia de Graciliano e destaca as difíceis condições do Nordeste brasileiro, marcado pela seca e pela fome. Antes de proceder a um glossário dos termos em português do Brasil que não haviam sido traduzidos, o texto finalizava com uma frase bastante significativa do próprio autor: o sertanejo é obrigado a escolher entre “morrer de fome em casa ou de vergonha na cidade”.

Apesar do Brasil dos primeiros anos de 1960 não ser o mesmo país dos anos 1930, quando o livro havia sido escrito por Graciliano, e, embora os anos 1950 tenham sido marcados por um forte processo de modernização que, apesar de grandemente excludente, proporcionara alterações na paisagem social, ampliando os decursos da industrialização e da urbanização, o Brasil continuava sendo lido na França, prioritariamente representado por suas paisagens rurais e pelo modo de vida sertanejo.

No início dos anos 1960, a coleção La Croix du Sud começou a ser criticada como uma empreitada editorial desigual entre os países latino-americanos, além de anacrônica. De fato, Miguel Angel Asturias, Mario Monteforte Toledo, representantes da Guatemala, e Carlos Luis Fallas, da Costa Rica, eram os únicos

escritores de países da América Central, à exceção dos títulos cubanos. A assimetria estendia-se também na representação do sul do continente, pois não havia nenhum autor colombiano ou boliviano publicado. Dessa maneira, o Sul de Roger Caillois estava bem mais centrado na Argentina, com 11 títulos, no Brasil e México com 7, e Cuba com 6.

Tornava-se evidente que as influências na escolha dos livros se davam prioritariamente pelas relações do organizador, mais próximas com autores argentinos como Alejo Carpentier, pelo fascínio pela estética brasileira e pela força editorial mexicana. A seleção era predominantemente marcada por títulos dos anos 1930, momento definido pelas correntes neonaturalista e realista. Dessa maneira, as questões sociais e a natureza exótica ao olhar europeu eram características desta coleção, na qual se concentravam, no caso brasileiro, obras sobre o Nordeste (Mérian 2014). Pode-se destacar, nesse sentido, um importante julgamento negativo enunciado pelo crítico literário Maurice Nadeau à La Croix du Sud, no dossier Nouveaux écrivains d’Amérique Latine, na revista Les Lettres Nouvelles, de 1961 (Guerrero 2018). Enfim, novas gerações de escritores latino-americanos vinham ganhando espaço no campo francês em editoras como a Julliard, casa rival da Gallimard, a François Maspero, Le Seuil entre outras, na medida em que a La Croix du Sud sucumbia (Camenen 2021).

A coleção acabou por ceder às críticas e foi encerrada em 1971. Todavia, o fim da coleção não significou o desaparecimento das obras que haviam sido anteriormente publicadas. Na realidade, todos os autores publicados por Roger Caillois passaram a integrar a coleção Du Monde Entier, da mesma editora Gallimard.

Isso significa, por um lado, que Caillois perdeu o monopólio simbólico de editor da literatura latino-americana, pois, neste momento, o campo editorial francês lançou maior investimento no mercado de traduções de títulos de línguas periféricas (Sapiro 2020b) e, por outro, que decidia-se preservar os títulos organizados por Caillois, e até mesmo consagrá-los numa coleção de maior importância simbólica. É importante notar que, assim como a coleção que findava, a coleção Du monde Entier possuía o selo NRF, que remetia ao prestígio de La Nouvelle Revue Française, em que se reuniam resenhas e críticas literárias, desde 1909.

Du monde entier e a reedição de Graciliano: a consagração da fome ou da vida? #

Sécheresse foi, assim, o título de Graciliano novamente editado, em 1989, na coleção Du monde Entier, com os paratextos praticamente idênticos à edição de 1964, da coleção de Caillois, ou seja, com a mesma tradução feita por Marie-Claude Roussel, prefácio e “index des termes brésiliens cités” no fim do livro. Houve apenas pequenas modificações com a supressão da orelha da edição de 1964 e a inclusão na contracapa de 1989 de comentários sobre as obras do autor traduzidas pela Gallimard. Destacava-se a publicação de: “Infância” (Enfance), lançada em 1956, traduzida por Gougenheim, publicada na La Croix du Sud, e relançada, em 1991, pela Du monde Entier com o mesmo tradutor; “São Bernardo” (São Bernardo), lançada em 1986, pela Du monde Entier, também com o selo da Collection Unesco d’oeuvres représentatives. Série Brésilliene; “Memórias do Cárcere” (Mémoires de prison), publicada na Du monde Entier, em 1988; “Angústia” (Angoisse), publicada em 1992, com tradução de Geneviève Leibrich e Nicole Biros, diretamente na Du Monde Entier, e relançada, em 1998, na mesma coleção, com a tradução de Michel Laban; e “Insônia” (Insomnie), traduzida por Michel Laban, com o selo Du monde Entier.

Vale dizer, entretanto, que antes do lançamento desta edição de Sécheresse, no interregno da transferência dos títulos de Graciliano Ramos da La Croix du Sud para Du Monde Entier, houve uma série de debates sobre o sentido e o valor da obra deste autor. Em seminários realizados de fevereiro a junho de 1971, na Université de Poitiers, diversos intelectuais se reuniram para discutir a estrutura linguística, narrativa, e questões ontológicas, entre outras problemáticas, do livro “Vidas Secas”2.

Em outras palavras, novos sentidos para além da compreensão fetichizada e folclórica do “aprendizado da injustiça” e da subalternidade estavam sendo buscados. De certa forma, as leituras e difusão de novas sensibilidades por meio dos livros de Graciliano Ramos inscreviam, por meio dos editores e tradutores, um Brasil mais complexo no centro desta República Mundial das Letras 3.

O que dizer então sobre essa ampliação dos títulos de Graciliano Ramos na Du monde Entier da Gallimard e dos debates sobre a obra do autor?

Primeiro, é preciso compreender o enorme capital simbólico que a editora Gallimard tinha para investir em traduções de autores estrangeiros, mesmo quando não obtinha retorno financeiro imediato. Afinal, o campo transnacional de livros não se limita aos aspectos econômicos, como o de vendas. Dessa forma, o valor literário é constituído – ou a crença desse valor – a partir de capitais simbólicos por toda uma cadeia de produtores culturais (SAPIRO, 2016). Tendo em vista que, na França, a produção em grande escala de traduções é quase dominada pela língua inglesa – com best-sellers mundiais, thrillers e romances românticos – o prestígio literário, oriundo da produção em menor escala de tradução, é praticamente emprestado pelo nome simbólico dos editores, de suas casas editoriais e coleções (Heilbron e Sapiro 2016). Dessa forma, o capital simbólico transnacional da Gallimard e da coleção Du Monde Entier deu maior visibilidade e reconhecimento ao autor de Vidas Secas, mecanismo necessário a sua entrada e consagração no cânone da literatura mundial.

Nesse hierarquizado sistema internacional da literatura, no qual a tradução é uma das formas de mediação e consagração dos autores, a língua francesa ainda guardava, no final do século XX, o posto simbólico de capital da República Mundial das Letras (Casanova 2002), mesmo que as traduções em língua inglesa tenham tido maior destaque no pós-guerra (Heilbron 1999). A centralidade do idioma francês como irradiador para outros grupos linguísticos implicava, portanto, na possibilidade de recepções e classificações consagradoras.

No caso de Graciliano Ramos essa consagração se deu, apesar de todos os debates que a sua obra provocava, nas década finais do século XX e, mesmo diante da postura dos críticos literários em busca da consagração de novas estéticas latino-americanas, por uma leitura marcada por uma interpretação, de longa duração, sobre o “aprendizado da injustiça”, os horrores da seca, a miséria dos homens e pela percepção do espaço geográfico brasileiro evidenciado pela imagem dos “galhos pelados da caatinga rala”.

Breves considerações finais #

Diante da análise, observam-se distintas tentativas da construção de uma ponte literária Norte-Sul. De um lado, pode-se afirmar que a perspectiva de Roger Caillois se centrou no Nordeste brasileiro e em suas questões sociais, intensificando as noções de miséria, fome e seca da região da “caatinga rala”. Todavia, no “berço” da injustiça e da subalternidade social – e literária –, a recusa de Fabiano, personagem de “Vidas Secas”, em morrer e seu desejo de “correr o mundo, ver terras” e enfrentar sua sorte ruim parece ter se concretizado na ampliação das traduções de Graciliano Ramos e em sua consagração literária em terras francesas. Isto porque o legado literário do autor se legitimou na capital da República das Letras, apesar dos estigmas da La Croix du Sud e de seu próprio fim, sendo levado à Du Monde Entier da Gallimard, coleção reconhecida por consagrar escritores estrangeiros.

Partindo do Nordeste, Fabiano, personagem de Graciliano, com suas inquietações e seu desejo de resistir, sobreviveu na medida em que o legado literário de Graciliano Ramos se consolidava. Contudo, para “ver terras” e ser visto foi necessário atravessar um mundo literário hierarquizado. Por esse motivo, é arriscado dizer que os vestígios coloniais, dos estigmas sobre os marginalizados literários e reais tenham chegado próximos ao fim. Em última instância, a transnacionalização de “Vidas Secas” evidenciou que este binômio revela também repertórios sobre as rupturas e permanências nas relações Norte e Sul e, portanto, mantém sua importância nos debates sobre as subalternidades contemporâneas.

Referências #

Camenen, Gersende. 2021. "El momento latinoamericano de Seuil: La colección Cadre vert de Claude Durand y Severo Sarduy (1967–1979)". In: La literatura latinoamericana en versión francesa: Trabajos del equipo MEDET LAT, editado por Gustavo Guerrero e Gersende, 195-218. Berlin, Boston: De Gruyter. https://doi-org.ezscd.univ-lyon3.fr/10.1515/9783110707557-008

Casanova, P. 2002. A República Mundial das Letras. São Paulo: Estação liberdade.

Furtado, André. Traduzir as Américas, apaziguar o mundo: notas sobre a coleção d’Œuvres Représentatives (UNESCO, 1948-…). 2019. (Apresentação de Trabalho/Congresso)

Guerrero, Gustavo. 2018. "La Croix du Sud (1945–1970): génesis y contexts de la primera colección francesa de literatura latinoamericana". In: Re-mapping World Literature: Writing, Book Markets and Epistemologies between Latin America and the Global South / Escrituras, mercados y epistemologías entre América Latina y el Sur Global, editado por Gesine Müller, Jorge J. Locane and Benjamin Loy, Berlin, Boston: De Gruyter, 199-208.

Heilbron, Johan & Sapiro, Gisele. 2016. “Translation: Economic and Sociological Perspectives”. In The Palgrave Handbook of Economics and Language, Basingstoke, editado por Ginsburgh, Victor e Weber, Shlomo, 373-402. UK: Palgrave-Mac Millan.

Heilbron, Johan. 1999. “Towards a Sociology of Translation: Book Translations as a Cultural World- System.” European Journal of Social Theory 2, no. 4 (November 1999): 429–44.

Lévi-Strauss, Claude. 1993. Tristes tropiques. Paris : Plon.

Mérian, Jean-Yves. 2014. « Jorge Amado dans la collection ‘La Croix du Sud’ de Roger Caillois ». Amerika, no. 10, 4. https://doi.org/10.4000/amerika.4992

Merkel, Ian. 2022. Terms of Exchange Brazilian Intellectuals and the French Social Sciences. University of Chicago Press.

Sapiro, Gisèle. 2016. “How Do Literary Works Cross Borders (or Not)?”. Journal of World Literature, Brill, vol. 1, no. 1, 81 - 96.

Sapiro, Gisèle. 2020. “The Transnational Literary Field between (Inter)-nationalism and Cosmopolitanism”. Journal of World Literature, Brill, vol. 5, no. 4, 481-504. https://doi.org/10.1163/24056480-00504002


  1. Referimo-nos ao trecho da obra Tristes Tropiques no qual Lévi-Strauss diz: “Le Brésil et l’Amérique du Sud ne signifiaient pas grand-chose pour moi. Néanmoins, je revois encore, avec la plus grande netteté les images qu’évoqua aussitôt cette proposition imprévue. Les pays exotiques m’apparaissaient comme le contre-pied des nôtres, le terme antipode trouvait dans ma pensée un sens plus riche et plus naïf que son contenu littéral.” (1993, 49). ↩︎

  2. Graciliano Ramos, « Vidas sêcas» [Texte imprimé] / séminaires de février et juin 1971. Poitiers : Centre de recherches latino-américaines de l’Université de Poitiers, 1972. ↩︎

  3. Este conceito de Pascale Casanova (2002) ultrapassa os limites nacionais do campo literário, mostrando uma economia e uma geografia própria à literatura. Casanova compreende que este mundo literário possui uma outra divisão, ou melhor, um próprio meridiano de Greenwich, que é o seu tempo literário. A universalização literária funciona como essa marcação temporal, na qual a consolidação dos valores humanos universais através da estética foram constituídos através das línguas. Mesmo com os processos de colonização que impuseram as línguas europeias para o além-mar, as regiões mais periféricas dos centros político-econômicos também se encontram distantes do tempo literário dominante seja porque não são entendidas como clássicas, ou porque suas pautas e fórmulas guardam certo grau de “exotismo” para a perspectiva dominante. ↩︎

Para citar este texto:

Giselle Venancio & Lucas Cheibub. 2023. « “Os galhos pelados da caatinga rala”: Graciliano e(in)screve o Brasil na França (1956-1998) ». In Colonialismos e Colonialidades: teorias e circulações em português e francês, Guerellus, Natália. Lisbonne-Lyon : Theya Editores - Marge - MSH Lyon Saint-Étienne. https://cosr.quaternum.net/pt/03.

Giselle Venancio

Universidade Federal Fluminense (Brasil)

gisellevenancio@id.uff.br

Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atuou como professora no doutorado “Patrimônios de Influência Portuguesa” (Universidade de Coimbra, 2020); como Directrice d’études na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) (Fondation Maison des Sciences de l’Homme, 2017); e como pesquisadora com bolsa para investigadores estrangeiros da Fundação Calouste Gulbenkian (Universidade de Évora, 2007). Doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com período sanduíche na EHESS/Paris, sob a direção de Roger Chartier.

Lucas Cheibub

Universidade Federal Fluminense (Brasil)

lucas.cheibub@gmail.com

Doutorando em História (2021-) pelo programa de Pós-Graduação de História(PPGH- UFF) com estágio de pesquisa no Institut des Hautes Études sur l’Amérique Latine (IHEAL) do Centre de Recherche et de Documentation sur les Amériques (CREDA) da Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3. É vinculado ao laboratório Escrithas da História/Historiografias do Sul, com o interesse na História do Livro e da Leitura.