Primeira parte - perspectivas teóricas
Os estudos pós-coloniais « lusófonos » nas universidades europeias
Resumo
Ignorados por muito tempo pela crítica francesa, os estudos pós-coloniais demoraram para entrar nas universidades na França. Embora continuem a ser objeto de muitas críticas, mais intelectuais hoje reconhecem, ao menos, a contribuição interessante destes estudos para os debates atuais. Em Portugal, observa-se uma forma semelhante de resistência, ligada, da mesma forma, a dúvidas sobre a relevância do aparato teórico que acompanha essas teorias no contexto lusófono. Por outro lado, também é importante destacar a influência das teorias decoloniais, principalmente do Brasil, que contribuem para a complexidade dos debates. O objetivo deste estudo é, portanto, destacar a complexidade dos debates pós-coloniais nas universidades portuguesas, fazendo um balanço da crítica pós-colonial acerca dos países africanos de língua portuguesa e dos fundamentos teóricos em que esta se baseia.Escrever sobre os estudos pós-coloniais « lusófonos » na Europa é um projeto aparentemente utópico. De fato, o título coloca de imediato vários questionamentos epistemológicos, o primeiro relativo ao uso do termo « lusófono », o segundo ao do termo « pós-colonial ». Se na Europa os termos « francofonia » e « anglofonia » conhecem um uso extenso e bem assimilado, as universidades portuguesas continuam a privilegiar a sigla PALOPs para designar os países africanos tendo o português por língua oficial. O termo « lusófono » é na verdade muito mais usado por outros países europeus do que por Portugal, pois traçam paralelos com outros textos de línguas X que os estudos pós-coloniais comparam. No contexto da lusofonia, a relutância quanto ao uso desta palavra sempre foi a mesma : apesar do passar do tempo e da evolução das organizações políticas e sociais no mundo, a palavra « lusófono » continua a se basear sobre uma construção lexical que refere à imagem amarga do antigo império colonial português.
Por outro lado, também é interessante notar como a língua portuguesa revela dissonâncias com, por exemplo, o uso que os escritores de língua francesa fazem do termo « pós-colonial » Na França, há uma distinção entre o termo « póscolonial » sem hífen (os estudos) e « pós-colonial » com hífen (o período)1. Esta distinção não funciona da mesma forma em Portugal, onde os críticos costumam privilegiar o termo « pós-colonial » (geralmente com hífen) para designar uma coisa e outra2. Se este exemplo pode parecer anedótico, não deixa de ser, a meu ver, uma ilustração das dificuldades com que os estudos pós-coloniais se debatem para se desenvolverem no país.
Esta questão vai, obviamente, muito além deste debate, sendo muito mais complexa. Em Portugal, como também na França, muitos pesquisadores têm relutado em ver estes estudos « surgirem » em suas universidades. Na França, as primeiras críticas contra os estudos pós-coloniais giravam sempre em torno das mesmas questões : o questionamento do peso científico dessa abordagem, as dúvidas sobre o uso do conhecimento histórico para fins políticos ou ainda a suspeita sobre a vontade de confrontar a República com seu passado colonial. Consideradas sobretudo como estudos provenientes dos departamentos de literatura dos países anglófonos, os pesquisadores franceses não viam com bons olhos estas análises que escapavam às suas tradições científicas e que ignoravam a diversidade dos contextos coloniais, sendo este último ponto talvez o argumento colocado com mais frequência.
Não foi por acaso que os textos de pensadores fundamentais como Homi Bhabha ou Gayatri Spivak demoraram muito para serem traduzidos na França.
Mas que dizer do pensamento pós-colonial hoje em dia ? Quando ele surgiu, na década de 1980, vinha de uma jovem geração de intelectuais de países do Sul, manifestando sua discordância com os discursos hegemônicos ocidentais, ainda marcados pela cultura colonial. Essa divergência estava ligada ao contexto político (e ideológico) da época, na medida em que os países ricos nunca deixaram de exercer sua supremacia sobre os países que haviam colonizado.
Influenciados pelo pensamento pós-moderno, esses autores se exerceram ao distanciamento crítico em relação aos discursos hegemônicos. As teorias pós-estruturalistas também lhes terão sido de grande apoio no exercício de desconstrução da crítica ao colonialismo. Segundo Jacques Pouchepadass (Smouth 2007, 187-188), também foi questionada a legitimidade desses escritores e pensadores de « estilo ocidental », percebidos como intermediários no comércio cultural com os países periféricos. Hoje em dia, é de fato difícil reconstituir um conjunto teórico à imagem dos estudos pós-coloniais. Eles são compostos por uma multidão de autores originários de países do norte e do sul, em diferentes disciplinas. A esta obra associa-se também um importante legado teórico, que acabou por seguir caminhos diversos e difundir-se por todo o mundo.
Existe um antes e um depois dos estudos pós-coloniais ? A resposta parece afirmativa. Na França, Jacqueline Bardoph já o havia demonstrado em seu livro Études postcoloniales et littérature, explicando que a partir de agora seria impossível ignorar o legado de Edward Saïd, que mostra no Orientalismo o modo como o discurso sobre o Oriente era somente uma projeção do Ocidente, uma construção discursiva que visava essencializar e congelar uma imagem mais do que descrevê-la em sua realidade complexa. Como negar a contribuição do pensamento de Gayatri Chakravorty Spivak que, inspirando-se na desconstrução de Derrida, mostra a dicotomia entre a margem e o centro e denuncia as desigualdades das relações sociais de gênero em seus *Subaltern Studies *? Acrescentemos, por fim, a importância das noções de ambivalência, hibridez e diferença de Bhabha, que terão tido no mínimo o mérito de lançar uma reflexão sobre as relações (nem transparentes, nem binárias) entre discursos coloniais e pós-coloniais.
No campo literário, os escritores e críticos continuam a denunciar uma visão eurocêntrica do mundo, utilizando diversas formas subversivas (discontinuidades, polifonia, pastiche, colagem) e contra-discursos para lutar contra qualquer forma de autoridade. Estuda-se a evolução das mentalidades e dos imaginários ; a situação das diásporas, dos imigrantes, o surgimento de novas formas de dominação/resistência para combater as relações de dominação ideológica e/ou oriundas da história colonial. O discursos continua sendo o lugar de predileção das análises pós-coloniais : os processos de enunciação, a língua, o universo do discurso, a abordagem sociológica que mostra as relações de causa e efeito, fazem parte das numerosas estratégias de leitura que conduzem suas lutas contra a hegemonia ocidental. Deve-se acrescentar a crítica de uma visão mundial globalizada que se apresentaria como uma nova forma de globalização cultural, um tipo de neo-imperialismo a serviço de uma economia mundializada, dominada pela comunicação e pela manipulação das imagens. Apesar dos estudos pós-coloniais terem perdido seu impulso, notemos que as temáticas abordadas continuam atuais.
No artigo intitulado « Les littératures postcoloniales lusophones3 » (Dos Santos 2011, 75-93) publicado em um número especial sobre estudos pós-coloniais na França, tentei mostrar como as literaturas africanas em língua portuguesa podiam « enquadrar-se » numa abordagem pós-colonial. Este exercício foi arriscado e ambicioso. Com efeito, a questão dos estudos pós-coloniais no contexto « lusófono » depende em grande parte do sucesso das análises do sociólogo português Boaventura Sousa Santos, particularmente na Europa e nas Américas. O pensamento de B. Sousa Santos (Godrie 2017, 143-149) caracteriza-se pelo olhar crítico que lança sobre a epistemologia eurocêntrica e hegemônica dos países capitalistas do Norte. Por « epistemologias do Sul », ele busca compreender as produções de conhecimento que emergem pouco a pouco de atos de resistência de grupos sociais submetidos à injustiça, à opressão do capitalismo, ao colonialismo ou ao patriarcado. As epistemologias do Sul se tornariam então lugares de expressão para esses grupos oprimidos, para que eles pudessem representar o mundo como ele lhes pertence. Trata-se, entre outras coisas, de tornar visíveis as exclusões (sociologia das ausências) causadas pela rejeição do sistema hegemônico vigente. O saber se estabeleceria então com o outro, e não sobre o outro ou a propósito do outro.
Na França, como em muitos países, um dos artigos mais referenciados sobre o pós-colonialismo lusófono é precisamente o seu estudo « Entre o Prospero e Caliban : colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade » (Sousa Santos 2001, 23-85), texto que também fez bastante sucesso no Brasil e em Portugal. O autor analisa as especificidades do colonialismo português, um país que teria sido sempre semi-periférico no sistema econômico capitalista, quase uma colónia (dependendo em particular da Inglaterra), e cujo colonialismo surge como uma espécie de colonialismo secundário ou subalterno. Esta situação explicaria por que razão Portugal desenvolveu uma política colonialista sem procurar adequá-la ao sistema capitalista, que florescia em outros lugares. Boaventura de Sousa Santos completa a sua análise lembrando que o próprio discurso colonial português era subalterno, o que explicaria porque a história do colonialismo (desde o século XVII) é escrita sobretudo em inglês e não em português. Este texto mostra os problemas de representação que o colonizador português teria encontrado, enquanto súdito colonizado pelos ingleses, o que o tornava um colonizador pouco eficiente e secundário. Para o sociólogo, a relação entre o colonizador português e o colonizado era ambivalente, digamos mais híbrida, do que aquela estabelecida pelo colonialismo inglês. Demonstra, assim, que o colonialismo português não adotou a mesma política colonizadora de outros países europeus e que ele se situa num espaço-tempo específico, caracterizado pela porosidade e hibridação. Daí a importância do processo inter-identitário que opera no pós-colonialismo lusófono.
Após sua popularidade, este estudo também sofreu muitos reveses, sendo alvo de diversas críticas, na medida em que a representação de um colonizador português em meio-tom era cada vez mais questionada3. Embora esteja claro que a intenção de Boaventura Sousa Santos era procurar indicar as especificidades de um colonialismo português há muito tempo ignoradas (ou mal compreendidas ?) no mundo ocidental, a imagem de um « colono-subalterno » deixou alguns pesquisadores acadêmicos um tanto duvidosos, por mais dependente que fosse de seu aliado inglês.
É também interessante verificar como surgem em Portugal estudos que, à semelhança do pós-colonialismo à francesa (Bancel e Blanchard 2017, 53-68), questionam a evolução do pensamento pós-colonial no antigo país colonizador. Por exemplo, a obra Uma história de regressos, Império, guerra colonial e pós-colonalismo de Margarida Calafate Ribeiro foi uma das primeiras obras a interessar-se pela história dos « retornados », os antigos colonos portugueses que voltaram para Portugal após as independências. À semelhança das análises francesas, os estudos pós-coloniais « à la portugaise4 » abrem-se para questões importantes como as relacionadas com a imigração das ex-colônias, os subúrbios, a miscigenação, a integração e o racismo.
A questão do pós-colonialismo « à la portugaise » (para retomar aqui a expressão francesa) supõe um olhar sobre o passado histórico deste país que continua a denunciar as dificuldades que este encontra com o seu passado colonial. O exercício não é novo e, infelizmente, carece de originalidade. De fato, os estudos pós-coloniais continuam a se desenvolver em países anteriormente colonizadores e a serem controversos. Do ponto de vista externo, é interessante observar como a questão da representatividade de Portugal se coloca de forma sistemática, as leituras e interpretações variando em função dos países e das épocas.
Este ponto me parece tanto mais fundamental pelo fato da questão da representatividade do colonialismo português ter permanecido fortemente marcada pelos discursos que circularam na época da ditadura, como a famosa teoria luso-tropicalista de Gilberto Freyre. Com efeito, a doutrina do sociólogo brasileiro apoiava-se sobre o fato do colonialismo português ter-se realizado com uma ideologia própria, e assentava-se sobre o nascimento de uma civilização profundamente multirracial. Esta ideologia foi utilizada por António de Oliveira Salazar para mostrar e justificar os benefícios da política colonial portuguesa nos territórios africanos (escondendo assim outras realidades ultra-nacionalistas). O fato de uma das primeiras objeções ao artigo de Boaventura Sousa Santos ter sido precisamente uma comparação com esta teoria não me parece insignificante. A paisagem intelectual portuguesa tendo sido há muito tempo abafada pelos discursos oficiais do Estado Novo para justificar a sua presença na África e ali manter os seus interesses, estes discursos assentavam-se geralmente sobre a representação de um Portugal benfeitor, próximo dos seus povos colonizados, a prática da miscigenação sendo uma prova dessas observações. O impacto da teoria do luso-tropicalismo foi tão grande que existe ainda hoje uma desconfiança face a qualquer tentativa de representação da colonização portuguesa que a pudesse confinar a um essencialismo orientado a serviço de interesses políticos e econômicos.
É interessante colocar aqui em perspectiva o pensamento do filósofo português Eduardo Lourenço que sempre se opôs, quando se tratava de pensar a história de Portugal, a qualquer excepcionalidade colonial portuguesa. Para o filósofo, é importante distinguir o que é uma colonização idealizada do que foi uma colonização real. A noção de colonização sendo nada mais do que uma forma de exploração de terras e populações, « acompanhada da tentativa mais radical ainda da despossessão do seu ser profundo » (Lourenço 2014, 66), a história da colonização foi acompanhada por uma mistificação colonial que procurava valorizar esta realidade.
Eduardo Lourenço também mostra como a consciência nacional pode sofrer de uma hipertrofia que distorce ora positivamente, ora negativamente, a autoconsciência para resolver seus próprios conflitos. A « missão civilizadora colonial » justificava os valores de um país cujas fronteiras se estabeleceram entre a reconquista da Península Ibérica e a « conquista » colonial. A imagem de um colono bom e benfeitor contribuiu, portanto, para essa consciência nacional hipertrofiada.
O pensamento de Eduardo Lourenço merece uma atenção particular na reflexão sobre as teorias pós-coloniais em Portugal. Obviamente, não se trata aqui de comparar o pensamento de Lourenço com o de Boaventura de Sousa Santos, o que se revelaria insatisfatório, mas sim de compreender, antes de mais nada, a importância da questão da representatividade no imaginário português. Com efeito, o autor oferece uma reflexão sobre a identidade nacional de Portugal a partir da análise das imagens que o país teve de si durante séculos. Esta abordagem oferece basicamente uma leitura do imaginário social português que se concentra sobre as representações simbólicas construídas. Como em qualquer nação, Portugal forjou um passado original para compreender o presente e projetar-se no futuro. O tempo real é claramente diferenciado neste estudo do imaginário, não para que este venha a preencher um vazio mas para responder a uma busca de identidade. No entanto, o filósofo insiste sobre o fato que, no caso de Portugal, não houve problemas de identidade (Lourenço 2014, 301). Pelo contrário, uma espécie de « superidentidade » teria sobretudo causado problemas com sua imagem. O pensamento de Eduardo Lourenço sugere, no fundo, a análise da evolução das representações que o país fez de si mesmo e que se alteraram ao longo do tempo e segundo as situações. Essas imagens teriam oscilado entre depressão e idealização, e teriam encontrado suas maiores dificuldades de autorrepresentação sobretudo em torno do século XIX, quando o país foi forçado a se comparar às novas nações hegemônicas do Ocidente. Todavia, mesmo assim, o país acabaria por se orgulhar da sua marginalidade, transmitindo ao mesmo tempo uma imagem idealizada e bucólica de um jardim tranquilo à beira-mar (Lourenço 2014, 303). Segundo o autor, António de Oliveira Salazar também soube utilizar esta representação para criar uma imagem de equilíbrio do país, entre a modernidade externa e a ruralização espiritual (Lourenço 2014, 304), à qual acrescentava o culto do Império colonial. Transmitia então a ideia de que Portugal era um país pequeno, modesto, mas eficientemente governado, rico na sua (imaginada) dimensão imperial que tinha restaurado, e que justificava a ideologia cultural da época (Lourenço 2014, 304). Se as representações simbólicas nacionais são fenômenos que acompanham a história de um país e vêm responder a questões sobre o lugar que essa nação ocupa no mundo, é possível perceber aqui o risco das manipulações políticas dessas imagens que serviram ao propósito de um ditador cuja política durou mais de trinta anos, e cujo impacto foi considerável sobre a população, mesmo após sua destituição.
As reflexões de Eduardo Lourenço parecem-nos de grande importância para a compreensão das questões ligadas às representações da colonização portuguesa. O autor se concentra apenas sobre os mecanismos que forjaram essas representações e se encontraram diante de continuidades e rupturas. Sua reflexão evidencia as complexidades históricas, culturais e políticas que circulam em torno dessas imagens que, sem vigilância, podem vir a ser reduzidas a estereótipos ou exotismos.
Quando observamos os estudos sobre as literaturas africanas de expressão portuguesa em Portugal, podemos observar atualmente a multiplicidade das abordagens. Embora importantes críticos tenham expressado relutâncias face aos estudos pós-coloniais, que percebem como uma espécie de utopia cultural que descarta, mas não apaga, as realidades locais (Pires Laranjeira) ou como uma forma de normalização do mundo, rumo a um pseudo « universalismo » que justamente não respeitaria as diversidades culturais (Inocência Mata), é certo que as teorias sobre as relações de poder e dominação têm sido lidas e analisadas pelos intelectuais portugueses e africanos, sempre atentos e curiosos sobre a circulação dos conhecimentos e contribuições teóricas em voga. Notemos, porém, que na continuidade da nossa reflexão sobre os estudos pós-coloniais nos países de língua portuguesa, e de acordo com as análises de Margarida Calafate Ribeiro, em particular no seu artigo « Pensar a partir da literatura – da importância dos estudos ibero-americanos », importa também destacar o impacto que os estudos ibero-americanos tiveram em Portugal. Com efeito, a autora mostra como os intelectuais latino-americanos têm sido fundamentais na hora de se pensar uma especificidade portuguesa em relação ao novo mundo europeu :
Basta pensarmos na definição dada, nos anos 30, por Buarque de Holanda relativamente a Portugal e Espanha como os “territórios ponte” através dos quais a Europa comunica com os outros mundos,e hoje, em todas as teorias de fronteira ou na visualização de Portugal como semi-periferia, como defende Boaventura de Sousa Santos,para vermos quão fundamentais são estes pensadores latino-americanos quando queremos reflectir sobre a especificidade de Portugal e Espanha em relação ao Novo Mundo e na Europa. (Calafate Ribeiro 2009, 63).
O autor cita com pertinência, a título de exemplo, pensadores portugueses como o filósofo Eduardo Lourenço ou o sociólogo Boaventura Sousa Santos, para mostrar como os pensadores latino-americanos sempre os influenciaram, particularmente a partir dos conceitos de « entre-lugar » e « diferenciação », com os quais trabalha Silviano Santiago. Que ele seja « semi-periférico » (BSS) ou « menos central » (EL), o fato é que o país continua a ser pensado ainda hoje a partir da sua diferença, e/ou pelo menos a partir de uma certa « marginalidade » em relação ao centro.
Chegando de maneira mais tardia a Portugal, certamente por causa do isolamento cultural ligado à ditadura, o pensamento decolonial também teve uma incidência considerável sobre a crítica lusófona. O pensamento decolonial, que se apoia sobre a noção de decolonialidade e trouxe uma visão crítica da produção científica e cultural ocidental, de sua hierarquia de saberes e de seus silêncios, propõe uma luta pela descolonização global a partir de uma descolonização da política dos saberes (Mignolo), do poder (Quijano) e do ser (Maldonado-Torres). A influência destes pensadores é hoje evidente e assumida pelo pensamento de Boaventura Sousa Santos, por exemplo.
Na Europa, é interessante observar a recepção das teorias pós-coloniais lusófonas, e mais particularmente das análises de Boaventura Sousa Santos. Na França, o historiador francês Michel Cahen talvez seja o crítico que afirma com maior convicção sua posição sobre a existência de um pós-colonialismo lusófono (Cahen 2022) com base nas teorias do sociólogo português. A partir de sua abordagem marxista da história, ele se opõe a uma certa concepção da epistemologia do Sul, acreditando que as relações dominante/dominado devem ser percebidas de maneira global. Vê no sociólogo português a formulação de um novo essencialismo, situando Portugal num estatuto semi-periférico que o historiador lhe recusa. Esse debate é compartilhado por outros pesquisadores como Roberto Vecchi na Itália (ou Ana Paula Ferreira nos Estados Unidos).
Em um volume publicado na Inglaterra, intitulado Postcolonial Theory and lusophone literatures (Medeiros 2007), também é interessante observar os debates e as posições tomadas frente às teorias de Boaventura Sousa Santos. Se alguns preferem recorrer à perspetiva filosófica de Eduardo Lourenço, vendo na sua reflexão uma visão mais matizada da colonização portuguesa, parece-nos, no entanto, importante sublinhar aqui o valor e o impacto da obra do sociólogo português que, na sua área de pesquisa, permanece no centro das linhas de reflexão.
Se hoje em dia nos parece efetivamente difícil referir-nos a um pós-colonialismo lusófono que se referisse principalmente e unicamente ao contributo do sociólogo português Boaventura Sousa Santos, também seria excessivo, e até incompreensível, ignorar a existência de reflexões pós(de)-coloniais quanto aos países de língua portuguesa. No campo dos estudos literários africanos, as referências a H. Bhabha, D. Chakrabarty, S. Hall, E. Lourenço, A. Mbembe, W. Mignolo, A. Quijano, E. Said, B. Sousa Santos, G. C. Spivak, entre outros, são amplamente lidos e compartilhados nas bibliografias de artigos científicos sobre o tema. No entanto, vários pesquisadores continuam, como na França, a não ver um desfecho favorável a esses estudos. Esta relutância apoia-se sobre questões relacionadas a uma hegemonia dos saberes onde os estudos « lusófonos » não encontram o lugar que mereceriam. Isso não significa, porém, que não haja interesse científico nos países de língua portuguesa, por parte daqueles que compartilham preocupações e valores comuns com aqueles que desejam pensar de forma diferente o mundo de hoje. Grandes nomes da literatura portuguesa como António Lobo Antunes ou Lídia Jorge também podem ser considerados hoje como escritores « pós-coloniais ». Esta observação também se aplica aos autores de cinco países da África ou do Brasil. As abordagens pós e decoloniais encontradas na crítica interessada pelos países de língua portuguesa na Europa atestam de campos de pesquisa que continuam a lutar contra os demônios de um ideal colonial profundamente racista, violento e injusto e cujas repercussões continuam a ser nefastas, mesmo no seio de antigos países colonizadores.
Referências #
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Na França, essa distinção foi feita em 2000 por Boniface Mongo Mboussa (entre outros críticos) : « Seguindo os estudos literários norte-americanos consagrados às literaturas minoritárias (minority) e às teorias pós-modernas elaboradas por filósofos franceses (Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, etc.), os críticos anglo-saxões mais influentes (Homi Bhaba, Henri Louis Gates, Edward Saïd, Helen Tiffin, etc.) desenvolveram uma teoria, o pós-colonialismo, que poderia ser sistematicamente definida como um conceito que examina criticamente a relação colonial. Para analisar a literatura do Terceiro Mundo, esses teóricos distinguem o termo pós-colonial (com hífen) que designa o período posterior à colonização e póscolonial, que se refere aos temas e estratégias literárias que escritores de países do Sul utilizam para resistir à perspectiva colonial ou até mesmo eurocêntrica da História » (Mongo Mboussa 2000, 3). ↩︎
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Esta constatação é marcante, por exemplo, na coletânea de ensaios organizada por Manuela Ribeiro Sanches. (Ribeiro Sanches, 2005, 7-21) ↩︎
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Ver a propósito os trabalhos de Ana Paula Ferreira e de Roberto Vecchi, entre outros críticos. ↩︎ ↩︎
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O historiador francês Michel Cahen retoma este título, interrogando-se sobre a existência de estudos pós-coloniais « à la portugaise », ou seja, à portuguesa, no colóquio « Déclinaisons du post-colonial dans les espaces culturels de langue portugaise et le monde : théories, émancipations et nouvelles représentations », realizado nos dias 7 e 8 de Abril de 2021 na Université Bordeaux Montaigne. ↩︎