Colonialismos e Colonialidades

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Terceira parte - circulações e medias

Mercado editorial de quadrinhos e leituras do Brasil na França

Resumo Neste ensaio, analisam-se representações da sociedade brasileira na França, no século XXI, a partir do estudo de histórias em quadrinhos traduzidas e publicadas neste país. Nesse intuito, são examinados títulos como Écoute jolie Márcia (Éditions çà et là, 2021), de Marcello Quintanilha, e Favela chaos: l’innocence se perd tôt (Anacaona, 2015), de Ferréz e Alexandre de Maio, entre outros, em seu contexto de publicação. Nosso objetivo é pensar se tais escolhas do mercado editorial dão ou não continuidade a uma tradição europeia colonialista de caracterização do Brasil.

Introdução #

O setor dos quadrinhos, importante fatia do mercado editorial francês, parece estar cada vez mais aberto à produção brasileira. Esse interesse leva-nos a uma série de questionamentos. Que obras são escolhidas para serem publicadas? Que lógicas regem o mercado da tradução e da edição nesse contexto? Será que o que se busca nessas obras ainda se associa a certas práticas de colonialidade ou de reforço da subalternidade? É a partir dessas perguntas que construímos nossas reflexões. Elas serão embasadas, sobretudo, na sociologia da tradução pela perspectiva de Johan Heilbron e Gisèle Sapiro.

Antes de passarmos a elas, vale esclarecer por que empregamos aqui o termo “colonialidade” e não “colonialismo”. Segundo Aníbal Quijano, entende-se por colonialismo “a relação de dominação direta, política, social e cultural dos povos europeus sobre os conquistados de todos os continentes” (Quijano 1992, 11). Já a “colonialidade” seria “o modo mais geral de dominação no mundo atual” (Quijano 1992, 14). Ela não esgota as condições nem as formas de exploração e dominação existentes entre os povos, porém “as relações coloniais de períodos anteriores provavelmente não produziram as mesmas sequelas e, sobretudo, não foram a pedra angular de nenhum poder global” (Quijano 1992, 14).

Diretrizes do mercado editorial da tradução #

Sabe-se que a tradução é um importante vetor de trocas culturais, podendo assumir diferentes funções segundo as condições de circulação transnacional de bens culturais. De acordo com Johan Heilbron e Gisèle Sapiro, a análise sociológica das práticas de tradução deve tomar por objeto o conjunto de relações sociais no meio das quais as traduções são produzidas e difundidas. Essa abordagem associa-se a duas outras, desenvolvidas por comparatistas, historiadores da literatura e especialistas de história intelectual. Em primeiro lugar, têm-se os Translations Studies, surgidos nos anos 1970, em pequenos países plurilíngues como Israel e Bélgica. Esses estudos se interessam por questões que dizem respeito ao funcionamento das traduções em seus conceitos de produção e recepção. Em segundo lugar, estão os estudos dos processos de “transferência cultural”, que se interrogam sobre os atores dessas trocas, instituições e indivíduos, bem como sobre sua inscrição nas relações político-culturais entre os países envolvidos. Ambos os enfoques vão além da problemática intertextual, centrada no vínculo entre o original e sua tradução, e conduzem a uma série de questões de ordem propriamente sociológica (Heilbron e Sapiro 2009, 15-16).

A primeira delas se refere ao espaço internacional e a grupos linguísticos ligados entre si por relações de concorrência e rivalidade. “Para compreender o ato de traduzir, é necessário, então, num primeiro momento, analisá-lo como imbricado em relações de força entre países e suas línguas” (Heilbron e Sapiro 2009, 16). Tais relações de força podem ser políticas, econômicas ou culturais. Esta última se divide em duas perspectivas: de um lado, a relação de força entre comunidades linguísticas de acordo com o número de locutores primários e secundários; de outro, o capital simbólico acumulado pelos diferentes países no domínio em questão. “As trocas culturais são, dessa forma, trocas desiguais que manifestam relações de dominação” (Matterlart apud Heilbron e Sapiro 2009, 16). Tais relações são visíveis no sistema mundial das traduções. Dados estatísticos do mercado editorial revelam que metade dos livros traduzidos mundialmente provém do inglês, língua que ocupa, portanto, um lugar “hipercentral”, segundo Heilbron & Sapiro (2009). Em seguida, mas em grande desvantagem, têm-se duas línguas centrais, o alemão e o francês, que representam cerca de 10% do mercado. Em posição dita “semiperiférica”, estão oito idiomas, como o espanhol e o italiano, que, juntos, contam de 1% a 3% das traduções. As demais línguas, reunidas, não somam sequer 1% do mercado internacional, sendo consideradas periféricas. Algumas delas, como o chinês e o árabe, correspondem, porém, a grupos linguísticos muito importantes quanto ao número de locutores.

Para os pesquisadores, a característica mais marcante no funcionamento desse espaço desigual se refere à relação entre o grau de centralidade e a importância relativa das traduções. “Em geral, quanto mais central é uma língua no sistema de tradução, menos se traduz para essa língua” (Heilbron e Sapiro 2009, 17). Por essa lógica, em países chamados “dominantes”, como Estados Unidos e Inglaterra, menos de 4% da produção nacional era composta por livros traduzidos, na década de 1990. Na França e na Alemanha, essa proporção variava entre 14% e 18%, no mesmo período. Já em países considerados “dominados”, como Portugal e Grécia, essa parcela chegava a 45% do mercado. Vale a pena destacar, é claro, que a classificação de nações como “dominadas” e “dominantes” varia historicamente e não depende apenas de seu poder econômico, mas também simbólico e político. A queda dos regimes socialistas, por exemplo, fez com que as traduções do russo diminuíssem drasticamente, aumentando, por outro lado, o número de traduções publicadas na Rússia (Heilbron e Sapiro 2009, 18).

Isso nos leva a uma segunda questão essencial para a sociologia da tradução, que são os princípios de diferenciação das lógicas de troca. Segundo Heilbron & Sapiro (2009, 18), três fatores principais determinam as transferências culturais internacionais: as relações políticas entre os países, o mercado internacional dos bens culturais e as trocas propriamente culturais. É necessário evocar também as restrições associadas a essa produção e a essa circulação. Tais restrições podem ser políticas (ou ideológicas), como acontece em países fascistas ou comunistas, onde a produção cultural é subordinada ao Estado. Elas podem também ser econômicas, ou seja, regidas pela lógica de mercado e submetidas à lei da rentabilidade. Assim, em países de extrema liberalização, como os Estados Unidos, “o campo editorial é cada vez mais dominado por grandes grupos econômicos, que tendem a impor critérios de rentabilidade e modos de funcionamento comerciais em detrimento da lógica literária e cultural” (Bourdieu apud Heilbron e Sapiro 2009, 19). Contudo, instâncias não mercadológicas também atuam nessa equação:

Se a fabricação de best-sellers mundiais, possibilitada pela liberalização das trocas, ilustra a lógica econômica da busca de rentabilidade a curto prazo, uma boa parte do processo de importação das literaturas estrangeiras diz respeito à lógica daquilo que Pierre Bourdieu chamou de “produção restrita”, ou seja, a produção de rotatividade lenta, que se projeta no longo prazo e visa à constituição de um acervo, como testemunham os modos de seleção (geralmente fundados mais em critérios de valor literário do que em chances de sucesso junto a um grande público) e as baixas tiragens. (Heilbron e Sapiro 2009, 20)

Esse espaço de produção restrita depende frequentemente de um sistema de auxílio à edição e à tradução, como o que se implementou na França, em meados da década de 1980, buscando ampliar a tradução, em francês, das literaturas de países menores1. A intervenção do Estado, nesse contexto, visa a conter os efeitos das pressões mercantis e o risco da uniformização dos produtos culturais. Ela é fundada “[…] na crença compartilhada de que o livro não é uma mercadoria como as outras” (Heilbron e Sapiro 2009, 21).

As circulações culturais internacionais só acontecem graças aos agentes que as intermediam: instituições e atores, que podem estar associados a lógicas políticas (institutos culturais, instâncias de concessão de apoio, adidos culturais etc.), econômicas (editores, agentes literários) e culturais (tradutores, autores e premiações). A atuação dos agentes do campo literário, em específico, cujo trabalho é baseado em recursos linguísticos e sociais próprios, pode favorecer o equilíbrio de transferências culturais, ao privilegiar a tradução da produção literária de um pequeno país, por exemplo. Essa escolha relaciona-se com outra questão fundamental para a sociologia da tradução, que são as lógicas que regem a recepção:

As línguas dominantes, devido ao seu prestígio específico, à sua antiguidade, ao número de textos declarados universais escritos nessas línguas, são detentoras de um capital literário importante. Esta acumulação diferenciada de capital simbólico, que pode variar segundo as áreas de criação concernidas, funda uma relação de força desigual entre as culturas nacionais, que tem consequências sobre a recepção dos bens culturais assim como sobre suas funções e usos: assim, para um campo literário nacional em via de constituição, a tradução de uma obra canônica da literatura clássica pode servir para acumular capital simbólico; inversamente, a tradução de um texto de uma literatura dominada para uma língua dominante como o inglês ou o francês constitui uma verdadeira consagração para o autor. (Heilbron e Sapiro 2009, 24)

Percebe-se, assim, que as lógicas que presidem a tradução das literaturas passam não somente pelo seu espaço de produção, mas também de recepção. Esses espaços, como vimos, podem ter fundamentos políticos ou econômicos, mas também não-mercadológicos (políticas públicas e editoriais, prêmios literários etc.). Com base nesses elementos, passaremos agora ao estudo dos quadrinhos brasileiros traduzidos recentemente na França, buscando compreender que espaços (materiais e simbólicos) são articulados nesse processo de transferência cultural internacional.

“Fiadores” dos quadrinhos brasileiros #

O tradutor literário se diferencia, em diversos aspectos, inclusive econômicos e jurídicos, do tradutor técnico. Logo, além dos desafios naturais ao setor da tradução (como o status das línguas em questão), ele está sujeito a desafios próprios ao campo literário, relativos, por exemplo, à hierarquia entre obras clássicas e contemporâneas, entre gêneros literários, autores etc. Esse grau de valorização torna-se ainda mais complexo quando o objeto da tradução é a história em quadrinhos, esse híbrido de texto e imagem, por tanto tempo menosprezado pela Academia. De acordo com Pierre Delannoy, a “banda desenhada” (como se diz, em português europeu),

[…] emancipou-se ao transformar a realidade do mundo, antes mero pano de fundo para as narrativas de aventura, em objeto em si. A partir do momento em que histórias tiradas da realidade histórica ou de fatos sociais e políticos atuais começaram a ser publicadas, os quadrinhos passaram a ser levados a sério e reconhecidos em pé de igualdade com os outros modos de expressão, como provam a atribuição do prêmio Pulitzer a Maus ou as reações do governo iraniano à publicação, seguida da adaptação para o cinema, de Persépolis, HQ autobiográfica de Marjara Satrapi, para citar apenas dois exemplos. (Delannoy 2007, 9)

Além de uma temática séria e realista, percebe-se que os quadrinhos, para ganhar visibilidade, foram comparados à literatura, exatamente como aconteceu com o cinema na primeira metade do século XX. Embora a origem das histórias em quadrinhos remonte ao século XVIII, mais precisamente a 17302, é somente dois séculos mais tarde, em 1992, com a atribuição de um dos mais importantes prêmios literários a uma graphic novel, que essa arte deixou de ser considerada mera forma de entretenimento, passatempo infantil ou gênero dito “inferior”.

Como se pode imaginar, o percurso não foi diferente para os quadrinhos brasileiros, tanto nacional quanto internacionalmente. Para chegar especificamente à França, país que enfocamos neste trabalho, um dos caminhos adotados por eles foi justamente a via literária: ou seja, a consagração de determinados escritores brasileiros serviu, muitas vezes, para legitimar a tradução de quadrinhos inspirados em suas obras. É o caso de Milton Hatoum, autor cujos romances, como Relato de um Certo Oriente (1990) e Dois Irmãos (2000), são publicados na França desde 1993. Este último sagrou-se vencedor do Jabuti, principal prêmio literário brasileiro, em 2001. Dois anos depois, foi lançado como Deux frères, pela Éditions de Seuil, com tradução de Cécile Tricoire, responsável por traduzir autores como Rachel de Queiroz, Celso Furtado e Patrícia Melo. O romance de Hatoum ganhou uma versão gráfica em 2015, no Brasil, pelas mãos de Fábio Moon e Gabriel Bá (“Os gêmeos”). No mesmo ano, esse romance gráfico foi traduzido para o francês por Michel Riaudel, professor titular em Estudos lusófonos na Sorbonne Université (Paris IV), e lançado em grande formato pela Urban Comics. No ano seguinte, o trabalho de Moon e Bá recebeu o prêmio Eisner de melhor adaptação de outra mídia.

Criado em 1988, por Dave Olbrich, o Eisner (homenagem ao grande quadrinista Will Eisner) é a mais importante premiação dos quadrinhos nos Estados Unidos, sendo considerada o “Oscar da Nona arte”. Moon e Bá já haviam sido agraciados antes, na categoria “Minissérie”, em 2011, por Daytripper; um ano depois, a mesma obra foi lançada na França, em edição de luxo, também pela Urban Comics. A tradução é de Benjamin Rivière, conhecido tradutor do mundo dos quadrinhos, que costuma transpor para o francês séries como Suicide Squad, X-Men, Hulk, para citar apenas alguns exemplos. O prefácio é assinado por Cyril Pedrosa, quadrinista francês de origem portuguesa, autor de Três Sombras (2008) e Portugal (2012), entre outros trabalhos conhecidos. É interessante pensar como, neste caso, o campo francês busca o respaldo não diretamente de um quadrinista brasileiro, mas de um descendente de portugueses. Ao procurar valorizar a obra dos “Gêmeos” a partir dessa referência, é como se o mercado francês reconhecesse, ainda que superficialmente, a perspectiva da “lusofonia”, com seus dois grandes centros, Portugal e Brasil.

Percebe-se, portanto, que o acesso das obras brasileiras ao mercado francês combina a legitimação da inspiração literária ao prestígio dos quadrinistas e de seu entorno editorial. Tal prestígio se constrói, muitas vezes, por condecorações obtidas nacional e internacionalmente. No Brasil, as honrarias mais relevantes, nesse domínio, são o Prêmio Angelo Agostini (criado em 1985, em homenagem ao artística gráfico ítalo-brasileiro) e o Troféu HQMix (surgido em 1989). O Jabuti, a mais importante premiação literária brasileira, que existe desde 1959, só concebeu uma categoria para os quadrinhos em 2018, depois de sofrer uma enorme pressão do meio cartunista. Para se ter uma ideia do quanto essa categoria se fazia necessária, O Alienista (2007), adaptação de Fábio Moon e Gabriel Bá da novela homônima de Machado de Assis (1881), teve que ser classificado como “Melhor livro didático e paradidático de ensino fundamental ou médio” para que pudesse ser laureado, em 2008. A especificidade um tanto incongruente da categoria talvez explique o fato de o volume só ter sido publicado na França 6 anos depois, em 2014, diferentemente dos demais quadrinhos dos “Gêmeos”, publicados pela Urban Comics logo após o lançamento no Brasil. A tradução (L’aliéniste) foi realizada por Marie-Hélène Torres, professora da Universidade Federal de Santa Catarina.

Na França, a principal recompensa almejada pelos quadrinistas é um troféu no Festival de Angoulême. Em 2022, na 49a edição do evento, um brasileiro foi quem recebeu o prêmio de melhor história em quadrinhos do ano (le fauve d’or): trata-se de Marcello Quintanilha, autor de Écoute jolie Márcia (Escuta, formosa Márcia). A obra, publicada na França em 2021, pela Éditions Çà et Là, foi traduzida por Dominique Nédellec, tradutor de escritores como os portugueses Gonçalo M. Tavares e António Lobo Antunes, o angolano Ondjaki e os brasileiros Michel Laub e Adriana Lisboa. Nédellec traduziu também L’Athénée (2017), adaptação de Quintanilha do romance O Ateneu (1888), de Raul Pompeia. Écoute jolie Márcia é a sétima obra do quadrinista fluminense publicada pela editora Çà et Là. Dentre elas, destaca-se também Tungstène (Tungstênio 2015), que rendeu ao autor outro prêmio em Angoulême, na categoria “romance policial”, em 2016. As tradutoras responsáveis pelo projeto são Christine Zonzon e Marie Zeni, que traduziram igualmente outros de seus álbuns.

Como vimos na primeira parte deste trabalho, segundo Heilbron e Sapiro (2009, 21-22), prêmios e distinções são elementos fundamentais para a estrutura do espaço de circulação e recepção de bens culturais. Eles atuam em benefício do equilíbrio em mercados regidos pela lei da rentabilidade. Diante de esferas editoriais cada vez mais dominadas por grandes grupos econômicos que privilegiam o lucro, iniciativas assim garantem a representatividade e a multiplicidade na produção e nas transferências culturais. Do mesmo modo e com o mesmo objetivo, destacam-se os sistemas de auxílio à edição e à publicação, como o implementado pelo Centre National du Livre (CNL), nos anos 1980. Graças a esse concurso, outro romance gráfico brasileiro pôde ganhar, nos últimos anos, as estantes das livrarias francesas: Cachalot (2012), álbum traduzido por Dominique Nédellec e lançado pela editora Cambourakis. A obra original (Cachalote, 2010) também fora publicada, no Brasil, graças a outro auxílio à edição, o do Ministério da Cultura e da Fundação Biblioteca Nacional. Os desenhos são de Rafael Coutinho, em seu trabalho de estreia, enquanto o roteiro é de Daniel Galera. O escritor, contemplado em importantes prêmios literários nacionais – como o Prêmio São Paulo de Literatura, em 2013, por Barba ensopada de sangue (2012) – teve também alguns de seus romances traduzidos para o francês, como Paluche (Mãos de Cavalo, 2010) e La barbe ensanglantée (2015), ambos publicados pela Gallimard. Cachalote foi vencedor do prêmio HQMix na categoria “Novo talento”, em 2010. Também esse exemplo corrobora a ideia, aqui apresentada, de que o peso da literatura, arte ancestral e já consolidada, juntamente à consagração obtida pelos quadrinistas com premiações tradicionais, caminham de braços dados em favor da inserção dos quadrinhos brasileiros no espaço editorial francês.

Sabe-se, porém, que a mera introdução no mercado não basta: é preciso expandir-se nele, conquistá-lo. Afinal, o livro, embora não seja uma mercadoria qualquer, não deixa de ser também uma mercadoria. Por essa perspectiva, compreende-se que “o valor da tradução não depende apenas da posição das línguas, mas também da posição dos autores traduzidos e dos tradutores3, tanto no campo literário nacional, quanto no espaço literário mundial” (Casanova apud Heilbron e Sapiro 2009, 24). Assim, buscando ganhar a confiança de leitores e críticos – e eventualmente de pesquisadores –, as editoras investem em tradutores de renome. Como se pôde observar, contratam-se profissionais conhecidos no meio dos quadrinhos, na esfera literária ou mesmo professores de grandes universidades para transpor para o francês os álbuns brasileiros.

Esse investimento certamente vale a pena, pois poucas fatias do mercado editorial são atualmente tão lucrativas quanto a dos quadrinhos. Já importante na França e em países vizinhos como a Bélgica, ele não para de crescer: valorizou-se em 34%, entre 2008 e 20184. Nem a crise da Covid-19 interrompeu essa expansão: em 2020, as vendas aumentaram em 9%, atingindo 53,1 milhões de exemplares. As obras mais lidas foram o álbum de Lucky Luke, Un cow-boy dans le coton, o 27° tomo da série de Blake e Mortimer, além de L’Arabe du futur 55.

Nesse sentido, cabe pensar no impacto que uma representação negativa nos quadrinhos franceses pode ter para o Brasil. Não se deve duvidar de sua amplitude e de sua duração potenciais. As consequências econômicas e sociopolíticas do K-pop, para a Coreia do Sul, ou dos animes e mangás, para o Japão6, não nos deixam duvidar da importância do “soft power” nos dias de hoje. Isso nos leva a refletir sobre outra questão determinante para a circulação de obras brasileiras na França: a temática.

Quais histórias podem ser ouvidas? #

Em seu estudo sobre álbuns europeus que apresentam o Brasil como tema, Gallego e Viana-Martin (2018) analisaram Sob o signo do Capricórnio (1970-1973), do italiano Hugo Pratt, e Caatinga (1995), do belga Hermann. Nessas obras, os pesquisadores encontraram três elementos preponderantes. O primeiro deles é o sertão, que fascina por sua rudez, expressa na vegetação, no clima e nas condições de vida da população: “As palavras sertão e caatinga, intraduzíveis, mergulham imediatamente o leitor francês num lugar alheio e exótico, que promete terras impenetráveis em um cenário árido” (Gallego e Viana-Martins 2018, 415). Nesse cenário, desponta, é claro, a figura temível e ao mesmo tempo sedutora dos cangaceiros, em especial Lampião. Em segundo lugar, aparecem os índios amazônicos, numa mistura de etnologia e mito literário. Por último, estão as crenças baseadas no sincretismo nacional: o mundo misterioso dos ritos afro-brasileiros leva o artista italiano a retratar o país como um lugar cheio de feitiçarias: “Entre a bravura dos bandidos do nordeste e os poderes esotéricos das mulheres da Bahia, os personagens brasileiros de Pratt são impregnados de uma força sobre-humana, fruto de uma sábia mistura que soa como o reflexo do sincretismo que caracteriza este país” (Gallego e Viana-Martins 2018, 425).

Se analisarmos quadrinhos originalmente franceses publicados mais recentemente, como os da série Rio (Glénat 2016-2019), de Louise Garcia e Corentin Rouge, ou Amazonie (Dargaud 2016-2020), de Leo, Rodolphe e Bertrand Marchal, veremos que esses elementos foram sendo gradualmente modificados ou substituídos por outros. A selva amazônica (mais do que os povos originários) continua a fascinar os europeus, juntamente com o sincretismo, constantemente estereotipado e mal interpretado. Ao mesmo tempo, novos temas vêm ganhando sua atenção. Destacam-se, entre eles, a violência das metrópoles, as favelas e a miséria. Essas dominantes parecem reger também a escolha de boa parte dos quadrinhos brasileiros publicados na França.

Conforme demonstrado, o diálogo com a literatura e o reconhecimento internacional endossam, frequentemente, a tradução de quadrinistas brasileiros. É curioso pensar, porém, que um autor como Lourenço Mutarelli não tenha seus álbuns transpostos para o francês. Prêmios não lhe faltam. Para se ter uma ideia, Mutarelli ganhou sete vezes o Troféu HQMix: como melhor desenhista nacional, em 1994, 2000, 2001 e 2002, e melhor roteirista em 2003, 2005 e 2007. Foi também eleito melhor desenhista, em 1992, e mestre do quadrinho nacional, em 2012 e 2014, pelo Prêmio Angelo Agostini. Em 2002, estreou também na literatura. Seu primeiro romance, O Cheiro do Ralo (2002), tornou-se rapidamente um grande sucesso de vendas, assim como aconteceu, anos mais tarde, com sua adaptação homônima para o cinema, por Heitor Dhalia, em 2007. O romance ganhou também uma versão francesa (L’odeur du siphon), publicada pela editora Tupi or not Tupi, em 2016, com tradução de Karine Bião et Luana Azzolin. Mutarelli parece, portanto, seguir os parâmetros necessários para ter seus quadrinhos editados na França. Contudo, no centro de suas tramas – como em A caixa de areia (2006) –, estão geralmente questões intimistas e autobiográficas, que remetem à infância e à relação com seu pai, por exemplo. Evidentemente, há espaço para enredos desse tipo no mercado francês – como atesta o sucesso estrondoso de L’arabe du futur, de Riad Sattouf, ou de Le retour à la terre, de Jean-Yves Ferri e Manu Larcenet. Porém, os agentes da intermediação cultural, ao voltarem os olhos para a produção brasileira, talvez busquem temáticas menos abrangentes e universais. Isso explicaria, em parte, a ausência de versões dos quadrinhos de Mutarelli para o francês.

A obra ganhadora do Festival de Angoulême – Écoute, Jolie Márcia, de Marcello Quintanilha – é um bom exemplo do que se procura no quadrinho brasileiro. A história se passa em uma comunidade do Rio de Janeiro, onde vive Márcia, mãe solteira da jovem Jaqueline. Junto a seu companheiro, Aluísio, a protagonista tenta ajudar a filha a se desvencilhar de seu envolvimento com o crime organizado. Tráfico de drogas, roubo, tiroteios, corrupção policial… não faltam à trama os mesmos ingredientes que garantiram sucesso de bilheteria a filmes como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, e Tropa de Elite (2007), de José Padilha. Ao mesmo tempo, Márcia é uma personagem cativante por sua humanidade: trabalha incansavelmente como enfermeira num hospital público, vive um bonito relacionamento com seu companheiro, é querida por todos a seu redor – com exceção dos bandidos com que se indispõe. O traço do autor, que se renova em cada trabalho, também merece ser salientado: a linha de contorno é discreta, quase invisível, dando espaço às cores, geralmente frias. Embora inteiramente digital, tem-se a impressão de que o desenho é feito com guache sobre papel. Isso atribui refinamento a cada quadro, independente daquilo que nele é retratado: de cenas absolutamente triviais a outras de considerável agressividade. A técnica gera certa leveza à leitura, atenuando a violência da temática abordada. É possível que esse equilíbrio tenha chamado a atenção dos jurados que elegeram Écoute, Jolie Márcia o melhor álbum do ano, em 2022.

A favela está também no centro de Desterro (2012), de Ferréz e Alexandre de Maio. Porém, neste caso, a trama se passa em São Paulo, no distrito de Capão Redondo. Conta-se a história de diferentes personagens da periferia paulistana, como Igordão, Mentira e Júnior, que se exterminam mutuamente, tentando em vão lutar pela própria vida. O que os une, além do território violento onde nasceram e cresceram, é o tráfico de drogas e o ritmo trágico da capital paulista. Inteiramente em preto-e-branco, os traços do desenhista recompõem o ambiente ríspido e sufocante dessa megalópole latino-americana. De Maio é um dos pioneiros do jornalismo em quadrinhos no Brasil. Já Ferréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva, é um escritor conhecido por romances como Capão pecado (2000) e Manual prático do ódio (2003). Manual prático do ódio e Desterro foram publicados na França pela Editora Anacaona, com os títulos Manuel pratique de la haine (2009) et Favela chaos: l’innocence se perd tôt (2015), respectivamente. Alguns contos de Férrez integram também as antologias Je suis favela (2012), Je suis toujours favela (2014), Je suis Rio (2016) e Je suis encore favela (2018).

Todas essas obras concretizam um dos principais objetivos da tradutora Paula Anacaona: difundir a “literatura marginal – uma literatura feita pelas minorias, raciais ou socioeconômicas”, como explicita na página de apresentação da editora. A pesquisadora Érica Peçanha do Nascimento esclarece, em sua dissertação sobre o tema, que “literatura marginal” se tornou “uma rubrica ampla que abrange a inserção dos escritores no mercado editorial, as características dos produtos literários, um tipo de atuação literária-cultural, ou ainda, a condição social do escritor” (Nascimento 2006, 20). No Brasil, a expressão teria ainda dois significados específicos, podendo se referir à produção de artistas da resistência, no contexto da ditadura militar, nos anos 1970, e às obras de escritores moradores das periferias urbanas, no início dos anos 2000. De acordo com Nascimento, “essa elaboração de uma literatura marginal, que traz à tona uma certa realidade de espaços e sujeitos marginais, embora produzindo controvérsias, agregou um conjunto de escritores que passou a se identificar com a expressão e a autoatribuir aos seus produtos literários essa ‘marca’” (Nascimento 2006, 20).

Ferréz é um dos precursores dessa geração. A publicação de suas narrativas, na França, confirma a política editorial engajada de Anacaona. Esse engajamento passa pela edição de quadrinhos, embora eles não sejam uma especialidade da casa (apenas três projetos desse gênero foram editados até agora). Além de Favela chaos: l’innocence se perd tôt, Anacaona publicou também duas narrativas gráficas em Je suis Rio, uma assinada por De Maio, a outra por André Diniz – responsável por ilustrar L’enfant de la plantation (2013), de José Lins do Rego (Menino de Engenho, de 1932), para a mesma editora. O trabalho de Anacaona é, portanto, extremamente profícuo para a literatura brasileira, como um todo, para a literatura marginal e, ainda em menor escala, para os “quadrinhos marginais”. Afinal, como afirmam Heilbron & Sapiro (2009), a tradução para as línguas centrais, como o francês, constitui uma consagração, capaz de modificar a posição de um escritor em seu campo literário de origem. Resta saber se esse reposicionamento no território nacional altera também o status do autor na esfera internacional. Em outras palavras, existe mobilidade possível quando se vive na “periferia do capitalismo”?

Centro e periferia: considerações finais #

Uma política editorial responsável é, evidentemente, uma importante forma de se regular trocas comerciais num contexto de ampla liberalização mercadológica. É assim que se estabelece o que Bourdieu chamou de “produção restrita”, isto é, uma produção de rotatividade lenta, que visa à constituição de um acervo e privilegia critérios como o valor literário ao sucesso de vendas (Heilbron e Sapiro 2009, 20). Nesse sentido, a editora Anacaona merece reconhecimento, pois “desempenha um papel estratégico de translocalidade, não apenas por difundir a literatura marginal brasileira na França, mas sobretudo por estabelecer um diálogo entre autores brasileiros e franceses, e leitores daquele país” (Rissardo 2021, s/p). Ao mesmo tempo, a busca constante das editoras francesas, na publicação de quadrinhos brasileiros de modo geral, por temáticas como a violência e a miséria levam-nos a uma inevitável indagação: nesse contexto, “pode o subalterno falar?” Tal pergunta, como se sabe, dá título a um conhecido ensaio de Gayatri Chakravorty Spivak (2009). Para a teórica indiana, a resposta é não: mesmo quando se exprimem, reivindicando uma identidade cultural coletiva, os subalternos são imediatamente devolvidos a sua posição periférica por uma intelectualidade eurocêntrica que, sob o pretexto de tornar-se mediadora, sequestra sua palavra.

A tradução, ainda que por vezes realizada com as melhores intenções, pode ser uma forma de se assumir a voz do outro. Afinal, quando uma editora escolhe o que deve ou não ser traduzido, ela determina que histórias devem ser contadas e quais, em teoria, podem ser silenciadas. Consequentemente, ela decide também, é claro, que narrativas chegarão até o público. Essa questão se torna mais problemática de acordo com os países envolvidos. Como observamos, o mercado editorial internacional é governado por relações de força políticas, econômicas e culturais. Nesse cenário, a vantagem de uma comunidade linguística quanto ao número de locutores primários e secundários não se compara ao poderio representado pela superioridade econômica ou pelo capital simbólico acumulado de uma nação ou grupo. Por isso, mesmo que o português seja uma das línguas mais faladas no mundo, superando 250 milhões de falantes, dos quais 212 milhões estão no território brasileiro, o Brasil continua a ocupar, no mercado editorial mundial, o espaço que ocupa na geopolítica, ou seja, um lugar à margem.

Muito disso se deve, evidentemente, a essa ferida colonial que não se cura. Michel Cahen insiste em afirmar não ser possível classificar o país como “pós-colonial”:

A abordagem poscolonial (sem hífen, em francês) é uma abordagem anticolonial e subalternista, que não tem uma significação cronológica. Não se trata de um “depois”, mas de uma abordagem que persegue, em sua busca, em nossos imaginários nacionais os mais republicanos, os resíduos deixados pelas ideologias coloniais, imperiais, raciais, paternalistas (e seus sucedâneos desenvolvimentistas). (Cahen 2011, 904)

A sociedade brasileira está eivada dessas ideologias coloniais, que mantêm inabaláveis diversas hierarquias, como as sociais e as de gênero. Da mesma forma, no cenário internacional, a partir de um ponto de vista eurocêntrico, reforça-se uma visão do país como subalterno, posto que representado sobretudo por seus problemas econômicos, raciais, ecológicos, entre outros. Nesse sentido, os quadrinhos passam a ser pouco mais que outro produto de exportação. Ou seja: do Brasil, de onde já se acostumou a importar itens como soja e carne bovina, habitua-se também a importar-se literatura marginal ou narrativas gráficas repletas de pobreza e criminalidade – conforme o gosto do freguês.

Não é preciso que seja sempre assim, porém. A tradução pode também desempenhar um papel na concepção das identidades coletivas (Heilbron e Sapiro 2009, 25). Assim como a música e a dança tiveram um papel central na criação de determinado imaginário do Brasil no exterior, também é possível agora aproveitar este momento de expansão dos quadrinhos brasileiros na França para se observar com atenção esse país latino-americano, que é mais que samba, mas também bem mais que selva, miséria e violência.

Referências #

Buzelin, Hélène. 2015. “Traduire pour le Centre national du livre”, COnTEXTES, Varia, 30 de outubro de 2015. https://doi.org/10.4000/contextes.6095

Cahen, Michel. 2011. “À propos d’un débat contemporain : du postcolonial et du post-colonial”. Revue historique, n° 660 : 899-913. https://doi.org/10.3917/rhis.114.0899

Delannoy, Pierre Alban (dir.). 2007. La bande dessinée à l’épreuve du réel, Paris : L’Harmattan/l’Université de Lille.

Gallego, Julie, e Viana-Martin. 2018. “Macumba dans le Sertão: quelles aventures brésiliennes pour la bande dessinée européenne?” In : Viana-Martin, Eden. Dialogues France-Brésil: circulations, représentations, imaginaires, 401-444. Pau: PUPPA.

Heilbron, Johan e Sapiro, Gisèle. 2009. Traduzido por Marta Pragana Dantas e Adriana de Sousa Costa. Graphos, vol. 11, n°2: 13-28.

Nascimento, Érica Peçanha do. 2006. “‘Literatura marginal’: os escritores da periferia entram em cena”. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.

Quijano, Aníbal. 1992. “Colonialidad y modernidad/racionalidad”, Perú Indígena, vol. 13, no. 29: 11-20.

Rissardo, Agnes. 2021. “Periféricos, então cosmopolitas: a ficção marginal brasileira em trânsito”, RITA [online], n°14: septembre 2021. http://www.revue-rita.com/articles/perifericos-entao-cosmopolitas-a-ficcao-marginal-brasileira-em-transito-agnes-rissardo.html

Spivak, Gayatri Chakravorty. 2009. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG.


  1. Referência ao programa de subvenção à tradução e à edição implementado pelo Centro Nacional do Livro (CNL), instituição associada ao Ministério da Cultura e da Comunicação, na França. Segundo Hélène Buzelin (2015), a iniciativa financia cerca de 330 projetos por ano. ↩︎

  2. Para mais informações, consultar o acervo do cartunista Andy Bleck, disponível em: https://konkykru.com/index.html Acesso em 30/05/2022. ↩︎

  3. Grifo nosso. ↩︎

  4. “La bande dessinée en France : chiffres et état des lieux”, Actualitté, 06 de janeiro de 2020. https://actualitte.com/article/9706/edition/la-bande-dessinee-en-france-chiffres-et-etat-des-lieux ↩︎

  5. “La bande dessinée ne connaît pas la crise”, Les Echos, 28 de janeiro de 2021. https://www.lesechos.fr/tech-medias/medias/les-ventes-de-bd-resistent-a-la-crise-sanitaire-1285424↩︎

  6. “Para compreender melhor o fenômeno”, cf. Bouissou, Jean-Marie. “Une approche économique du nouveau soft power japonais. Pourquoi aimons-nous le manga ?”. https://halshs.archives-ouvertes.fr/hal-01024805/↩︎

Para citar este texto:

Angélica Amâncio. 2023. « Mercado editorial de quadrinhos e leituras do Brasil na França ». In Colonialismos e Colonialidades: teorias e circulações em português e francês, Guerellus, Natália. Lisbonne-Lyon : Theya Editores - Marge - MSH Lyon Saint-Étienne. https://cosr.quaternum.net/pt/01.

Angélica Amâncio

Universidade de Poitiers (França)

maria.angelica.amancio.santos@univ-poitiers.fr

Angélica Amâncio é Professora Adjunta no Departamento de Estudos portugueses e brasileiros da Université de Poitiers (França). É doutora em Literatura Comparada pela UFMG e pela Université Paris 7, além de tradutora formada pela ESIT (Université Sorbonne Nouvelle). Realizou Pós-Doutorado na USP (2016) e na Université Paris 3 (2018). Suas pesquisas são voltadas, sobretudo, para a Literatura brasileira contemporânea, as circulações culturais e as relações entre Literatura, outras artes e mídias.