Terceira parte - circulações e medias
Instâncias etnográficas, colonialismo e edição de livros no Estado Novo português
Resumo
Durante os anos 1950 e 1960, paralelamente às movimentações ideológicas no seio do Estado Novo português, o campo das ciências sociais transforma-se e complexifica-se. A tradição da colaboração no esforço de colonização de discursos como o da antropologia física a partir de uma pauta supremacista ou evolucionista não desaparece, mas perde terreno e é forçada a conviver com as alterações de paradigma que se verificam em diversas instituições da metrópole e das colónias. Este surto renovador, embora seja limitado, é fundamental para abrir caminho a vias modernizadoras do pensamento e conhecimento, sempre capazes de estabelecerem laços com o projecto colonial do Império português.Introdução #
Paralelamente às movimentações de índole mais ideológica e filiadas numa perspectiva com mais projecção nos anos iniciais do Estado Novo português (e até, com cambiantes, nos anos finais da I República), o campo das ciências sociais foi-se complexificando e modificando. A tradição da colaboração de discursos como o da antropologia física no esforço de colonização a partir de uma pauta supremacista ou evolucionista não desaparece, mas perde terreno e é forçada a conviver com as alterações paradigmáticas que se vão verificar no decurso dos anos 1950 em várias instituições da metrópole e das colónias. Vários organismos oficiais são palco de uma capacidade de penetração de enfoques novos, quer quanto à doutrina quer no que se refere a metodologias de governo de populações e territórios. Transformações de génese, ritmo e poder de influência variados no interior do espaço das ciências sociais vão conhecer uma institucionalização progressiva, espelhando um acolhimento de certos sectores administrativos às propostas renovadoras de disciplinas como a sociologia ou a antropologia.
O caso da vaga reformadora que sucessivamente a Escola Superior Colonial sofre entre meados dos anos 1950 e os primeiros anos do decénio seguinte constitui uma demonstração exemplar deste processo. Fundada em 1906 como Escola Colonial, passa em 1927 a Escola Superior Colonial. O ano de 1954 marca nova reconfiguração institucional da escola de formação de quadros destinados ao exercício do funcionalismo em contexto colonial, com o rebaptismo para Instituto Superior de Estudos Ultramarinos. Este instituto é integrado na Universidade Técnica de Lisboa em 1961 e, no ano seguinte, adopta a designação que sobreviverá até o fim do regime autoritário: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Áreas do conhecimento como a sociologia e a antropologia social rejuvenescem paulatinamente o plano de estudos da instituição, com especial visibilidade ao longo da década de 1960 (Ágoas 2012).
Renovação científico-institucional e renovação editorial: quadros da realidade portuguesa no pós-guerra #
O eco desta dinâmica académica e científica nas instituições portuguesas, suscitando ou ampliando condições para a efectivação de projectos de sistematização e racionalização do conhecimento sobre os territórios ultramarinos, capaz igualmente de supor algum impulso de políticas de governação dos territórios coloniais baseado nesses contributos das ciências sociais, constitui-se, portanto, num movimento que operou alguma distância paradigmática da matriz mais antiga, de timbre essencialista e racialista, apoiada na antropologia física e em modelos jurídicos de controlo populacional, que, todavia, não deixam de fazer o seu curso, num jogo de tensões no seio do difícil sistema de articulações entre políticas públicas para territórios e populações das colónias e fundamento intelectual e até ideológico das mesmas (Castelo 2012a e 2012b; Curto, Cruz e Furtado 2016). As mudanças ocorridas no seio da Junta de Investigações do Ultramar (JIU) traduzem esta convergência de processos, manifestando este organismo na sua prática editorial algumas das suas tensões.
Criada como Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais em 1936, e renomeada na sequência da revisão constitucional de 1951 (que, no período posterior à II Guerra Mundial e no início da dinâmica em favor da autodeterminação e emancipação das colónias africanas e asiáticas que se lhe seguiu) removeu vocabularmente os termos colónias e colonial, substituindo-os por ultramar e ultramarino),1 a JIU centralizou e conferiu moldura institucional às diligências científicas envolvendo as colónias. A actuação da JIU corporizou na sua orgânica um conjunto de centros espelhando uma crescente divisão do trabalho científico relativo aos territórios coloniais, cuja criação depois de 1951 privilegiou justamente os domínios disciplinares das ciências sociais e da historiografia, instituindo internamente organismos como o Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar (1954), o Centro de Estudos Históricos Ultramarinos (1955), o Centro de Estudos Políticos e Sociais (1956), o Centro de Documentação Científica Ultramarina (1957) ou o Centro de Estudos de Antropologia Cultural (1962). Um dos seus múltiplos campos de intervenção foi o da edição, publicando a JIU uma panóplia de materiais, desde cartas geográficas ao periódico Garcia da Orta. E também livros.
As colecções publicadas vão desde a miríade temática de estudos e fontes que a colecção “Anais” acolhe entre 1946 e 1960 até às diversas séries monográficas da colecção “Memórias” (1953-1971), passando ainda pelas colecções “Estudos”, “Ensaios e Documentos” (1950-1980), “Estudos de Ciências Políticas e Sociais” (1956-1973) e “Estudos de Antropologia Cultural” (1964-1981). A “Estudos, Ensaios e Documentos” e a “Estudos de Antropologia Cultural” foram das poucas – senão as únicas – colecções sobre o tema colonial editadas por organismos do Estado Novo a galgarem a divisória política entre ditadura e democracia. Mais numas do que noutras destas séries, a introdução de temas novos e de olhares novos representa não apenas uma necessidade de recentrar a política colonial em termos dos instrumentos que a operacionalizariam, mas constitui-se também como plataforma editorial e oportunidade para alguma modernização e abertura a linguagens científicas até então com muita dificuldade em emergir autonomamente no plano das instituições.
Este surto renovador é fundamental para abrir caminho a vias modernizadoras do pensamento e conhecimento (bem aproveitadas depois da instauração da democracia), embora não deixe de ser limitado. E de estabelecer laços com o projecto colonial, e até com os pressupostos de uma política suportada pela ideia de assimilacionismo com base num julgamento prévio que isolava as populações nativas em agregados cultural, social e economicamente coerentes internamente e distintos entre si. Apesar de inscrito em lógicas de comunhão com – ou inspiração em – propostas sediadas na prática científica internacional, de que é exemplo o contributo de Jorge Dias,2 este conjunto de estudos aborda os aspectos tradicionais e étnicos de cultura e sociedade de determinadas comunidades, concorrendo para uma certa reificação de processos de produção e manifestação humana capturados como expressão consistente e susceptível de ser descrita e interpretada na sua congruência distintiva. Com efeito, o “estudo de práticas culturais tradicionais por todo o império, visível no trabalho de diversas instituições coloniais, respondia a questões científicas restritas sobre a cultura do colonizado: a identificação do costume ou as formas de aculturação” (Domingos 2012, 404).
Mas os processos sociais que se desenrolavam no seio dos próprios territórios ultramarinos (implicando um contexto urbano permeável a dinâmicas de interacção entre grupos e de apropriações múltiplas constitutivas de feixes de comportamentos e mercados de consumo), desafiam as intenções homogeneizadoras do regime ou os esforços de classificação dos estudos de matriz etnográfica baseados em acepções puras e essencialistas do tradicional, assimilado a uma identidade fixa e irredutível na sua descrição categorizadora. A cultura popular urbana – envolvendo formas de apropriação geradoras de práticas de consumo de música, vestuário, cinema, entre outros, e até de vocabulário – exibida por população considerada indígena pelo regime é ignorada por esta dinâmica de conhecimento, passando completamente ao lado das propostas editoriais da JIU, o que paradoxalmente ilustra modos de integração assaz diversos da assimilação esperada pelo poder colonial. Nesse sentido, os
consumos urbanos de populações discriminadas pelo poder colonial português testavam categorizações jurídicas oficiais apoiadas numa conceção civilizacional que condenava os indivíduos a uma vida “tradicional”, fixada pelo costume. No quadro imperial português, o contacto urbano com uma cultura da cidade parece ter atuado mais eficazmente como instrumento de integração do que as pretensas políticas assimilacionistas do Estado colonial (Domingos 2012, 396).
Regressando ao catálogo editorial da JIU, saliente-se, no entanto, que não acomoda apenas o sopro novo de uma narrativa suportada num enquadramento científico renovador que, além de não ser isento de ligação a um projecto político que alia conhecimento a política colonial, ainda tem de coexistir com um discurso e uma doutrina preocupada em promover alguns dos aspectos de subordinação e dominação justamente postos em causa ou matizados pelo contributo das ciências sociais. A permanência de obras assentes em primados como o da racialização das relações a partir de um eixo da desigualdade, justificativas desses princípios como pauta política de formas de governação vincadamente discriminatórias, exemplifica o carácter tensional na edição com o selo da JIU. Aduza-se um caso, ilustrativo por remeter para uma realidade exterior aos territórios coloniais portugueses. Em 1971, com chancela JIU, sai do prelo o livro África do Sul: vizinha de Portugal, de Richard Pattee, investigador e docente no Canadá. O autor estava bem vinculado institucionalmente a Portugal, tendo sido doutorado pela Universidade de Coimbra e sendo por alturas da publicação membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, da Academia Internacional de Cultura Portuguesa e da Sociedade de Língua Portuguesa. Apresentando-se como um estudo sobre o Estado da África do Sul, o volume não deixa dúvidas sobre o seu alinhamento, favorável à política ultramarina e colonial da ditadura portuguesa, o que é, aliás, visível imediatamente no próprio título da obra (aludindo pouco subtilmente ao facto de Moçambique possuir uma fronteira com a África do Sul. Neste título, a JIU dá cobertura editorial e, portanto, voz institucional, ao regime de apartheid, simbólico na arena dos discursos sobre imperialismo, colonialismo e exercício do poder pela segregação racial. Sobre este tópico, escreve Pattee que:
O exame do apartheid – teoria e conceito – conduz a uma conclusão irrefutável: o problema corresponde a uma situação especial particular a condições mentais, culturais e históricas que são individuais da África do Sul. É violentar a razão e o senso comum condenar o princípio sem compreender profundamente esta tremenda realidade. O conceito não é hostil aos indígenas; não os condena à degradação como pretendem os adversários; não aspira sequer a uma supremacia branca sobre pretos sem defesa para fins inconfessáveis (Pattee 1971, 329).
A tentativa de fundamentação de um sistema opressivo e altamente lesivo dos interesses de uma ampla maioria populacional da África do Sul é, em si mesma, uma apologia desse sistema, enfileirado e alinhado com o sistema português de dominação colonial. O facto de ser pela via da JIU que este posicionamento é plasmado em livro sinaliza com vigor as várias áreas de cruzamento, desencontro e contradição em que se estribava o colonialismo português. Se este se encontrava preso, ainda e sempre, a uma doutrina de hierarquia racial estratificada rigidamente de acordo com níveis atribuídos de civilização, categorizados e reificados frequentemente de acordo com tipologias construídas por discursos putativamente científicos, não deixava de alardear, paradoxalmente, a possibilidade e o desejo de assimilação, civilização, integração ou desenvolvimento (conforme os tempos e os contextos discursivos) das populações nativas, estatuindo-se esta segunda dimensão como um dos esteios da proclamação de um excepcionalismo português face ao ultramar e à relação com os povos colonizados, por comparação com a colonização levada a efeito por outras nações, sobretudo europeias (Matos 2006).
E será no âmbito das idiossincráticas regras inscritas nesta tensão que as opções editoriais de organismos públicos como a JIU, mas também de editoras privadas, terão de ser jogadas. O olhar etnográfico é um dos géneros editoriais em que melhor se consegue uma percepção desta transição, com todas as reminiscências de um foco atávico. Os prémios da Agência Geral das Colónias (AGC), depois Agência Geral do Ultramar (AGU), incidentes nos estudos etnográficos terão seguramente contribuído para a permanência de propostas editoriais espelhando perspectivas que os livros da própria JIU vinham colocar em causa.
Por exemplo, a reedição em 1966 da obra de José Redinha, Etnossociologia do Nordeste de Angola, pela Editora Pax, inserida na colecção Metrópole e Ultramar, cauciona a outorga de importância a um determinado modo de conceber o conhecimento em contexto colonial, ilustrando a permanência de uma perspectiva profundamente ideológica. Tendo recebido o Prémio Frei João dos Santos de 1956 no concurso anual de literatura colonial da AGU e encontrando-se esgotado antes de ser incorporado em 1966 na colecção “Metrópole e Ultramar” como edição revista e aumentada,3 o livro apresenta um registo próximo de uma etnografia de teor descritivo, de onde não estão ausentes várias críticas ao Ocidente e à sua actuação. José Redinha assume até um traço de “denúncia de critérios modernos, pseudo-idealistas, contrários às realidades históricas, étnicas, culturais, e até humanas, dos povos africanos” (Redinha 1966, 189). Prefigurando-se como um contributo útil “para um maior conhecimento dos povos do nosso ultramar, para a melhoria dos processos de contacto” (Ibidem, 189), o texto move-se entre águas turvas, de onde brota uma certa ambiguidade intencional, insuficiente, contudo, para neutralizar a sua índole comprometida.
Lá está a narrativa da excepcionalidade colonial portuguesa, resultante para Redinha de uma colonização antiga. Embora assinale alguns erros e ambivalências ao colonialismo português, o autor declara elogiosamente que essa colonização se iniciou “sob o signo de cultura, bem expressa no seu método de assimilação cultural, [e] caracterizou-se sempre por factos da maior importância, como sejam, a ausência de ódios religiosos, de teorias de espaço vital, de sistemas de segregação”, permitindo ao “Português disfrutar uma consideração particular e uma simpatia específica” (Redinha 1966, 167). Uma indesmentível perspectiva evolutiva permeia a conclusão, subjazendo-lhe a tese do surgimento futuro de uma “neocultura africana”, que se desenvolverá num friso cronológico plasmado na referência eurocêntrica que o volume afirma contestar. Para Redinha, “África, presentemente, no domínio da cultura natural que a caracteriza, encaminha-se para a sua Idade Média, que será seguida, sem dúvida, duma vigorosa Renascença, ainda que distante, fecundada pelo génio das novas culturas assimiladas” (Redinha 1966, 181).
Para lá de pretensas tensionalidades que o atravessam, o livro carrega inegavelmente o espírito de uma década anterior à da sua reedição, premiado durante o derradeiro período que o Estado Novo viveu sem a sucessão de sobressaltos que o assolaria a partir de final desses anos 1950. Mas explora novas fórmulas de promoção de ideias menos novas, na medida em que o seu conteúdo e especialmente a sua forma já não traduzem roupagem mais agreste, bem visível no decénio anterior, 1940. Dez anos antes da concessão do prémio da AGU ao manuscrito de Redinha, viera a lume o livro Associações Secretas Entre os Indígenas de Angola, de Serra Frazão, vencedor do Prémio de Etnografia no XIX Concurso de Literatura Colonial da AGC, e prefaciado pelo “ilustre colonialista e escritor general Norton de Mattos” (Frazão 1946, página de rosto). Publicado pela Editora Marítimo-Colonial,4 o livro é apresentado como o segundo de seis volumes abrigados sob o título genérico de “Estudos Etnográficos dos Povos de Angola”. Deste estudo, diz Norton de Matos que procura
penetrar a alma dos indígenas de Angola, descortinar o modo de ser das suas qualidades e defeitos e compreender a sua mentalidade, tão complexa apesar da sua primitividade. […] Não sei que haja em qualquer religião, em estados de moral os mais rigorosos, prática mais perfeita de amiudados exames de consciência, crença mais elevada no poder da vida pura. E, como se verá nalgumas páginas deste livro, tudo isso se encontra nas almas que nos dizem serem simples e primitivas dos pretos da África.
E tanto e tanto há a dizer sobre esses pretos que todos os homens de pensamento claro que por África se demoraram, deveriam imitar o autor deste livro e outros escritores […] e dar-nos o resultado das suas observações e das suas conclusões sobre a civilização dos pretos. […] Talvez eles deixassem então de ser considerados por muitos de entre nós como seres inferiores, incapazes de qualquer progresso (apud Frazão 1946, 7-8).
Está dado o mote para uma visão legitimadora do conhecimento etnográfico ou apresentado como tal e do seu contributo para o processo de administração colonial, que tudo teria a lucrar com esse saber produzido, logrando-se então um colonialismo mais eficaz. Isso mesmo é confirmado pelo autor, Serra Frazão, quando declara, logo na abertura do volume, que a “alma dos negros – mistério eterno – deve merecer a todos um carinho muito especial; e, para que lho possamos dar, teremos de a estudar com a maior dedicação e cuidado, visto que do seu conhecimento nascerá, sem dúvida, uma obra administrativa, não diremos mais humana que a que temos, e na qual podemos dar exemplos a todos, mas muito profícua e valiosa para o levantamento moral e social do povo negro " (Frazão 1946, 9).
Tensões na abordagem ao colonial na edição portuguesa de âmbito etno-literário durante a ditadura #
A edição portuguesa reflectia as contradições das propostas relativamente às abordagens a adoptar em termos da defesa de uma administração colonial e da manutenção do império, nas rupturas e continuidades com que as heterogéneas posições do campo político e intelectual tinham de se debater. E este quadro tornava-se particularmente complexo no âmbito da difícil transição da defesa de uma presença colonial portuguesa baseada num ressurgimento imperial respaldado na superioridade rácica do europeu sobre o “gentio”, de repúdio da penetração cultural mútua e mais ainda da mestiçagem, para a apologia de uma condição de excepção do português na sua relação colonial com os outros povos favorecedora de uma espécie de comunidade de sentimento e cultura luso-tropical, num mundo que o português criou, segundo as expressões do tropo freyriano (Freyre 1933 e 1940). A proposta do luso-tropicalismo, de matriz culturalista complexa, aspiracional e desnacionalizadora de Gilberto Freyre, elaborada desde Casa-Grande e Senzala, inicialmente publicada em 1933, nunca foi doutrina oficial de Estado em todas as suas implicações. Acossado desde o final da Segunda Guerra Mundial por um crescente ambiente adverso à sua natureza colonial, agravado pela vaga de independências de ex-colónias europeias, o regime salazarista apenas se aproveitou de modo circunstancial, redutor e selectivo das propostas de Gilberto Freyre (que não deixava de possuir um fundo de colonialidade) (Couto, Enders e Léonard 1997; Cahen 2018), para cuja obra teve uma recepção bastante tardia (Castelo 1998; Marques 2008; Anderson, Roque e Santos 2019), facilitada apesar de tudo, pela circulação na esfera intelectual dos livros editados a partir do início dos anos 1950 pela Livros do Brasil.5 A edição fora da órbita oficial do poder não deixou de reflectir estes difíceis equilíbrios.
A “Colecção Ultramar”, da Portucalense Editora, surgida e desaparecida de rompante no ano de 1969, demonstra na sua efemeridade estes equilíbrios, sem nunca deixar de apontar à benignidade do projecto colonial. Contemplando três títulos,6 todos elegendo o conto como veículo literário, a “Colecção Ultramar” ostenta um pendor pró-colonização, embora procure ocupar um espaço no qual a apologia do império se faça subtilmente pelo conhecimento do outro, do nativo africano. Parece, pelo menos, ser esse o projecto de Manuel Dias Belchior em Contos Mandingas, número inaugural da colecção. Belchior, um funcionário de alta patente na administração colonial portuguesa, fala de um programa assente no conhecimento das populações nativas e do seu funcionamento social, cultural e económico. Só ele possibilitará, nas palavras do autor, a materialização do projecto de uma colonização moderna e, uma vez mais, multirracial. Para Belchior, todos os objectivos essenciais “que consistem em fazer do negro um escolar assíduo, um defensor esclarecido da sua saúde, um produtor consciente e um aliado seguro, serão atingidos quando tivermos suficiente conhecimento das sociedades tribais. Esse conhecimento permitirá obter a confiança do africano e em seguida iniciar com ele um diálogo frutuoso através do qual o esclareceremos sobre as nossas intenções. E só então, ele ouvirá o que tivermos para lhe dizer.” (Belchior 1969, 11). Localizada no domínio literário, a colecção parece dar palco a figuras que encarnam o papel do “escritor antropólogo – europeu e imperialista” (Sousa 2018, 31),7 patente em muita da produção editorial que durante o século XX e até à descolonização promoveu a ideologia e a prática do colonialismo português.
As relações entre olhar antropológico (e não apenas a sua componente física) e desígnio colonial foram vigorosas e, não obstante a sua vetustez na história imperial como na história da própria disciplina,8 vão conhecendo transmutações9 no decurso do século XX português, com inserção assídua na actividade editorial. A começar pelas edições a cargo das estruturas governativas, visíveis não somente nos casos aduzidos, como as edições especializadas da JIU, mas igualmente na própria AGC/AGU, com muitas páginas do seu boletim a serem ocupadas por textos de natureza etnográfica ou patenteando preocupação etnológica. Um dos casos mais evidentes da manifestação editorial de um plano de incrustação da produção antropológica nos desideratos coloniais é o das Edições da Primeira Exposição Colonial Portuguesa, nomeadamente o programa de edição das Actas do I Congresso Nacional de Antropologia Colonial, encontro decorrido entre 22 e 26 de Setembro de 1934, promovida pela Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia sob a égide da Direcção da Exposição Colonial Portuguesa.
Estas Edições da Primeira Exposição Colonial Portuguesa funcionaram com epicentro na cidade do Porto, que acolheu a realização do certame entre 16 de Junho e 30 de Setembro de 1934. A aposta num plano de edições que deixasse traço foi notória desde o início, conferindo à iniciativa um cunho impresso de propaganda e disseminação, mas também de registo, aproveitando as vantagens de legitimação e fixação tipográfica que o livro publicado oferece. O ano de 1934 concentra a larguíssima maioria de volumes com chancela editorial da Primeira Exposição Colonial Portuguesa, formando um conjunto de pequenas brochuras. Uma fatia substancial dessas edições da Primeira Exposição Colonial Portuguesa correspondeu às “Actas do I Congresso Nacional de Antropologia Colonial”, surgindo esta colecção essencialmente como volumes e separatas ou extractos (segundo a terminologia da editora), lançadas com o selo da Edição/Edições da 1.ª Exposição Colonial Portuguesa. O braço editorial do certame, gerou, desta maneira, um manancial produtivo integrando várias dezenas de artigos decorrentes de apresentações ao congresso (alguns deles em inglês), em linha com mundividências pró-coloniais e com perspectivas que – sem esgotar a variedade de propósitos, conteúdos e princípios epistémicos – se ancoraram essencialmente na fileira da antropologia física ou comprometida com os interesses e o projecto colonial do Estado Novo, incluindo as motivações mais evidentemente celebratórias e de glorificação do império a partir de eixos como o da musealização.10
Nota conclusiva #
As transformações institucionais e epistémicas no âmbito da aproximação antropológica à realidade colonial portuguesa e as modalidades editoriais em que essas mudanças se inscreveram ocorrem num contexto de meio de século em que o império português não colapsara ainda. Esta circunstância torna a realidade portuguesa diversa de outras realidades coloniais como a francesa, que conhecerá um processo de erosão colonial mais precoce do que o que sucedeu com o caso português, cujo império cessou somente com o derrube da ditadura, em Abril de 1974. Em todo o caso, a dinâmica editorial ecoando a estreita articulação entre os estudos etnográficos e a sua institucionalização no quadro de uma lógica de administração colonial portuguesa porta seguramente traços comuns com casos como o francês, que terá precedido o português em cerca de vinte cinco anos (Piriou 1997; Dimier 1999; Blanckaert 2001; Jolly 2019), incluindo chancelas editoriais de instituições como a Direction Génerale des Affaires Indigènes, o Comité de l’Afrique Française, o Institut Français d’Afrique Noire, a Société d’Éditions Géographiques, Maritimes et Coloniales ou a Association Colonie-Sciences, mas igualmente casas editoriais como as Éditions Larose, Honoré Champion, Éditions Coloniales, Peyronnet et Cie, algumas das quais estabelecidas desde o século XIX.11
Referências #
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No quadro desta operação cosmética, “as expressões ‘colônias’ e ‘império colonial’ são substituídas por ‘províncias ultramarinas’ e ‘ultramar’” (Castelo 2012b, 396). ↩︎
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Figura pioneira no desenvolvimento dos estudos etnográficos em Portugal, Jorge Dias (1907-1973) foi uma das figuras mais proeminentes da antropologia em Portugal no século XX. Não deixou de ser, ele próprio, uma personagem contraditória, conciliando um discurso crítico da posição etnocêntrica com a exaltação das virtudes fraternais do cristianismo. ↩︎
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A primeira edição deste título é da AGU e data de 1958. ↩︎
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Com sede em Lisboa, a Editora Marítimo-Colonial teve duração muito breve, publicando entre 1944 e 1947. Registou ainda uma aparição efémera e praticamente sem obras editadas em 1966 e 1967. ↩︎
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Entre 1951 e 1957, a Livros do Brasil dá um forte impulso à entrada definitiva e consolidação de Gilberto Freyre nos meios culturais e políticos de Portugal, dando à estampa, por ordem, O Mundo que o Português Criou (1951), Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas (1951), Aventura e Rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e acção (1954), Um Brasileiro em Terras Portuguesas. Introdução a uma possível Luso-tropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, África e do Atlântico (1954) e Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1957). A inscrição tardia do pensamento freyriano nos círculos intelectuais e governativos sinaliza-se também no facto de que o último título desta lista, Casa-Grande & Senzala, corresponde àquele que originalmente surgiu primeiro (1933) e no qual Freyre estabelece as bases do seu pensamento sobre este tema. Entre a primeira edição brasileira da obra e a primeira edição portuguesa dista quase um quarto de século. ↩︎
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Saem na colecção Contos Mandingas, de Manuel Dias Belchior, Contos Portugueses do Ultramar, uma antologia de Amândio César em dois volumes, e De Manhã Cai o Cacimbo. Contos angolanos, de Orlando de Albuquerque. ↩︎
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Sandra Sousa demonstra como um conjunto de obras vencedoras do Concurso de Literatura Colonial, de jaez intrinsecamente literário, independentemente das apreciações estéticas que podem recair sobre cada um dos títulos galardoados, se revestiram de um subtexto antropológico, produzindo uma ligação quase umbilical entre literatura colonial e antropologia com o propósito legitimador da existência do império e das colónias. O saber antropológico e a ficção literária souberam, aliás, convergir e até unir-se em processos criativos de imaginação colonial e pós-colonial, deles resultando experiências de ficção etnográfica (Izzo 2019). ↩︎
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A bibliografia sobre a ligação entre projecto imperial e antropologia é muito extensa. Sem quaisquer predicados de exaustividade nem de representatividade, vejam-se Diane Lewis (1973), Talal Asad (1973), Nancy Stepan (1982), Nicholas Thomas (1994), Bernard Cohn (1996), Patrick Wolfe (1999), Peter Pels e Oscar Salemink (1999), Benoît de L’Estoile (2000), Ricardo Roque (2001), Rui Mateus Pereira (2005), Miguel Vale de Almeida (2008), Nuria Fernández Moreno (2009), Douglas A. Lorimer (2013) e Alice Conklin (2015). ↩︎
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As interacções entre actividade etnográfica e colonialismo revelam uma praxis e uma constelação narrativa cuja complexidade, nas contiguidades, decalques, simbioses e distanciamentos em que se traduziram, remetem para uma realidade caleidoscópica e dificilmente redutível a fórmulas de entendimento e expressão esquemáticas Roque 2010). ↩︎
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Casos de Da Necessidade da Criação do Museu de Etnografia, do Tenente Afonso do Paço, ou de Museu Etnográfico do Império Português. Sua necessidade – um plano de organização, de Luiz Chaves. Este último autor emblematiza enfaticamente o recurso retórico a esta via. “Ninguém porá em dúvida esta verdade: Portugal tem a obrigação histórica e a necessidade política inadiável de organizar o museu etnográfico do seu império.” (Chaves 1934, 3). A nota final não é menos grandiloquente no estilo: “Inexeqüível? Não. Grandioso? Quanto mais melhor; nunca será bastante para o que fizemos e para o que devemos ainda fazer.” (Ibidem, 20). ↩︎
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Para uma visão panorâmica do movimento editorial em França sobre esta temática durante o primeiro terço do século XX, e só para o caso da ampla e inclusiva categoria de “história colonial”, veja-se o arrolamento bibliográfico de M. M. Alfred Martineau, M. Roussier e M. J. Tramond (1932). ↩︎