Segunda parte - circulações intelectuais
Carolina Maria de Jesus, intérprete do Brasil
Resumo
Três séculos e meio de escravidão deixaram uma herança profundamente enraizada na sociedade brasileira, ainda mais porque a integração da população negra nunca foi realmente planejada (Fernandes). Pelo contrário, ela deu origem a práticas cotidianas de exclusão e violência contra o afrodescendente, contrariando as diversas ideologias forjadas para diluí-lo no projeto de construção de um Estado-nação. Assim, o lugar reservado ao negro na sociedade brasileira tem sido o de um “racismo naturalizado por um sistema econômico, político e jurídico que tem perpetuado sua condição de subalternidade” (Almeida). O epistemicídio faz parte disso e, por muito tempo, impediu que o negro deixasse sua condição de objeto para se tornar sujeito (de sua própria história, de uma autorrepresentação), apesar do inegável lugar da herança africana na cultura brasileira. A literatura brasileira, como um campo de conhecimento há muito associado a uma elite intelectual e econômica, não é exceção. Carolina Maria de Jesus nos mostrou, por meio de suas histórias e de sua posição social, que o escritor escreve (e é percebido) com base em “sua localização geopolítica e corpo-política” (Grosfoguel). A partir desta reflexão, tentaremos entender sua escrita como um espaço para a enunciação do sujeito marginalizado, bem como para a encenação de uma memória traumática.Demograficamente, economicamente e culturalmente representativo, o afrodescendente tem muitas vezes ocupado um lugar marginal nos "nichos" intelectuais e literários no Brasil. Desde a independência política do país, a literatura tem desempenhado um papel importante na reflexão sobre a nação e os símbolos da sua identidade. Até a primeira metade do século XX, era a expressão, sobretudo, de uma classe social rica. Assim, durante dois séculos, as representações sociais feitas por muitos escritores brasileiros foram construídas a partir de um lugar epistemológico que excluiu o ponto de vista do homem negro e, em particular, o da mulher negra (Dalcastagnè 2008). Nesse sentido, o campo literário reproduziu as estruturas sociopolíticas de dominação e exclusão de parte da população brasileira pois, com raras exceções, não ouvimos a voz das mulheres afrodescendentes ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX.
1. Carolina Maria de Jesus, outsider within #
Para além de Maria Firmina dos Reis (1822-1917), só na década de 1950 emergiu das margens sociais uma voz feminina, negra e periférica, a de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). O encontro com o jornalista Audálio Dantas, em 1958, foi o início de uma deslumbrante carreira literária para a moradora da antiga favela do Canindé. Quarto de despejo: diário de uma favelada [Le Dépotoir : le journal intime de Carolina Maria de Jesus] (1960), título de sua primeira obra, obteve grande sucesso editorial no Brasil e no exterior, tendo sido traduzido para 29 idiomas. Sessenta anos depois, a obra de Carolina Maria de Jesus finalmente foi reconhecida pela comunidade acadêmica, cultural e editorial brasileira por meio dos inúmeros trabalhos dedicados à sua obra, bem como pelas recentes exposições e novas edições de suas obras. Sua produção é tanto mais emblemática que ela abre caminho para outros autores que se definem como afrodescendentes ou periféricos (Mello Botton 2020, 25). No entanto, esse reconhecimento só vem ao final de um lento processo e é a prova de uma reconfiguração do campo literário brasileiro que, diante da emergência de vozes "ex-cêntricas" (Hutcheon 1991, 131), deve abrir espaço para outras epistemologias literárias.
Em 1972, uma década após a publicação de seu primeiro livro, Carolina Maria de Jesus confiou o manuscrito do Diário de Bitita [Journal de Bitita] a Clélia Pisa, jornalista franco-brasileira, e a Maryvonne Lapouge-Pettorelli, tradutora. Em nome da editora Métailié, foram até sua residência rural em Parelheiros, interior de São Paulo, e receberam pessoalmente dois cadernos manuscritos, de 194 e 392 páginas, cuja uma parte fôra selecionada e traduzida para o francês, publicada postumamente em 1982. A edição brasileira, de 1986, contentou-se em retraduzir do francês para o português, obliterando uma expressão linguística e um estilo que lhe são próprios (a começar pela mudança do título originalmente pretendido pela autora, "Um Brasil para os brasileiros" [Un Brésil pour les Brésiliens] (Fernandez 2018).
Várias críticas já foram feitas quanto à apreciação de leitores ou da crítica literária sobre a qualidade literária da obra de Carolina Maria de Jesus. Regina Dalcastagnè alerta para um olhar redutor lançado sobre De Jesus como simples testemunha de uma realidade social, apagando todo valor estético de sua obra (Dalcastagnè 2008, 96-99). Aliás, as inúmeras traduções de Quarto de despejo são a prova de uma paixão pela escrita que revela o cotidiano das primeiras favelas brasileiras – exato momento de uma intensificação do processo de modernização das cidades grandes brasileiras, do qual participam as políticas de desfavelamento. Talvez por isso o Diário de Bitita tenha despertado tão pouco interesse, pois não se tratava mais da história da fome e da miséria que alimentava a curiosidade dos leitores no Brasil e no exterior, mas de uma narrativa mais potente que, a cada linha, deflagra a sociedade de classes de ontem e de hoje em todas as suas nuances.
Ao contrário do Quarto de despejo, uma escrita da urgência1, o Diário de Bitita tem uma intenção memorialística. Por meio de uma construção performativa, como toda escrita do eu, a autora narra os anos passados em Minas Gerais antes de migrar para São Paulo em 1937, onde viveu até sua morte em fevereiro de 1977. De um lado, Diário de Bitita coloca em ficção uma memória traumática, até então obscurecida pela história oficial e, de uma certa maneira, pelo campo literário brasileiro. Um trauma que, apesar de sua natureza subjetiva, não se restringe à experiência individual, mas, ao contrário, constitui uma experiência coletiva intergeracional (Ortega 2011). A teoria da pós-memória, noção forjada por Marianne Hirsch (2012) sobre a repercussão de fatos históricos traumáticos para a geração seguinte, nos ajudaria, assim, a refletir sobre as formas de transmissão, por meio da criação literária, do legado traumático da escravidão e sua expressão. Em Diário de Bitita, De Jesus nos mostra como o passado se atualiza no presente, na forma de uma herança sócio-étnica, pelas degradantes condições de vida dos personagens. De fato, décadas após o fim da escravidão, uma memória colonial atemporal, a do racismo cotidiano, ainda está presente na sociedade brasileira e é transmitida para a próxima geração de forma a impactar sua percepção da realidade (Kilomba 2019, 213) . Com isso, por meio das diversas discriminações, o trauma histórico é intensificado ao longo dos séculos por um processo de exclusão social e econômica imposto ao negro no Brasil.
Com efeito, quase um século após a abolição da escravatura, Carolina Maria de Jesus regressa às histórias “esquecidas” porém vivas desta memória. Nesse sentido, ela coloca no centro de sua obra e da literatura brasileira contemporânea a transmissão de uma memória traumática presente na sociedade brasileira décadas após o fim da escravidão. Como Hirsch argumentou em relação ao romance Beloved (1987) de Toni Morrison, o trauma de um evento histórico trágico, como o Holocausto e a escravidão, pode desencadear poderosas repercussões intergeracionais. Até porque a memória da escravidão não é apenas uma representação do passado. Assim como no romance de Morrison, as personagens femininas de Carolina Maria de Jesus são, ao contrário, portadoras e narradoras de uma exclusão histórica que as toca em primeiro grau e, por isso, o trauma da escravidão torna-se sua própria memória. A literatura torna-se assim o discurso capaz de recuperar e preservar os vestígios do passado ao mesmo tempo que dá a este mesmo passado, transformado em ficção, uma outra versão das narrativas da nação.
Por outro lado, o caráter claramente autorreferencial de sua narrativa não nos impede de encará-la também como uma autoficção na medida em que “escrever sobre si mesmo é inevitavelmente uma invenção de si mesmo” (Mounir Laouyen 2002). Assim, a parte inegável da imaginação presente na história de De Jesus, meio encontrado pela autora para preencher as lacunas de sua memória, seria de fato a garantia de uma compreensão de sua própria experiência. Em sua interpretação de um processo sócio-histórico do qual faz parte, o psíquico fornece chaves importantes para a compreensão das repercussões dos fatos e o imaginário torna-se a garantia de acesso a um autoconhecimento mais profundo por parte do sujeito que (se) conta (Ricoeur 2008). A obra constitui-se assim como um vestígio do passado que, confundindo as fronteiras entre realidade e ficção, transforma-se numa experiência partilhada e num retrato de um país onde modernização muitas vezes rimou com exclusão.
Em "A Ilusão Biográfica", Bourdieu confronta a narrativa autobiográfica tradicional, onde a história de vida é concebida como um desdobramento cronológico e lógico dando um sentido retrospectivo à vida que é contada, à narrativa como uma trajetória cujos estados sucessivos ocupados pelo indivíduo acontecem em "um espaço também em devir", e relativamente a outros indivíduos "envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço de possíveis" (Bourdieu 1986, 71-72). De fato, o significado cronológico dos fatos é de pouca importância para De Jesus em comparação com "a qualidade pré-narrativa de sua experiência humana" (Ricoeur 2008).
Através de sua narrativa, Carolina Maria de Jesus pode tanto ter uma compreensão de si mesma (uma das funções mediadoras da obra literária, entre o ser humano e ele mesmo) quanto tornar-se sujeito (do discurso/de sua história). Nesse sentido, os dois anos de escolaridade que recebeu representam um ponto de inflexão para sua formação como escritora. Assim, como argumenta Ricoeur, ela pode se tornar uma identidade narrativa por meio do exercício de escrita que marcou sua vida. Isto não se opõe, porém, à ideia de uma vida como sucessão de experiências, na medida em que a história que contamos da nossa própria vida, e que nos constitui como sujeito, não deixa de ser reinterpretada "à luz das narrativas que nossa cultura nos oferece" (Ricoeur 2008). A vida vivida seria assim um percurso constituído por estados sucessivos, e sujeita à relação com outros indivíduos, que só a narração permitiria tornar inteligível.
Quando contada, permite que o indivíduo se torne o narrador de sua própria história, reinterpretando-a constantemente à luz de outras histórias. A cada capítulo do Diário de Bitita, a história do eu traz à tona a dimensão coletiva dos vestígios memoriais dxs afrodescendentes ficcionadxs por um ponto de vista interno. Assim, nessa escrita de si que indiscutivelmente borra as fronteiras entre o biográfico e o ficcional, vemos emergir um retrato complexo do processo de não integração do negro na sociedade brasileira. Porém, não mais testemunhando uma realidade percebida pelo público como excepcional, a da favela, seu relato autobiográfico parece não ter despertado tanto interesse por parte de seus leitores e da crítica.
Além disso, não podemos ignorar a incompletude de sua história, da qual conhecemos apenas uma parte e cuja linearidade na forma de capítulos é tanto mais artificial por ter sido elaborada, após sua morte, por seus tradutores, que selecionaram e corrigiram o manuscrito para a versão publicada (Fernandes 2018). Nesse sentido, fica por fazer a publicação integral de todos os seus cadernos para melhor compreensão da amplitude de sua obra.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é, sem dúvida, uma das escritoras mais representativas de uma ruptura epistêmica no campo literário brasileiro no século XX e representou uma virada em favor da encarnação do que Mignolo definiu como um espaço fronteiriço de enunciação (Mignolo 2008, 297). Através de sua obra e de seu lugar social, ela mostrou que o/a escritor-a escreve (e é percebidx) a partir de uma "localização geopolítica e corpopolítica do sujeito que fala" (Grosfoguel 2006, 56). Assim, a sua escrita é marcada por uma performatividade biográfica, o que leva a análise de algumas de suas histórias a tomar em conta o seu caráter tanto autobiográfico quanto sócio-histórico. Nesse sentido, a obra de Carolina Maria de Jesus representa uma ruptura estética para a literatura brasileira e um novo paradigma para os autores "periféricos" contemporâneos: uma autorrepresentação capaz de veicular um pensamento descolonial (e não apenas dar voz ao/à escritor-a/intelectual negrx).
O lugar do eu é um marco importante para compreender a representação da realidade em questão (pobre, negra, migrante e neta de forro). Bitita, um apelido de família, só frequentou a escola por dois anos, mas o suficiente para aprender a ler e escrever. Apesar dessa educação parcial, ela é uma das poucas pessoas alfabetizadas de sua família, a escola gratuita tendo sido acessível aos negros apenas a partir do governo republicano. De fato, como nos lembra Fernandes (2018, 66-67), a escolaridade continua sendo importante para a integração dxs afrodescendentes no competitivo mercado de trabalho. A pouca escolarização de que De Jesus se beneficiou, mas suficiente para mudar sua relação ao mundo, continua sendo uma exceção para uma população majoritariamente analfabeta. Os livros aos quais teve acesso por acaso lhe permitiram ampliar seu campo de conhecimento e decifrar melhor sua realidade ("Uma vizinha me emprestou um livro, o romance da escrava Isaura. Eu que já estava cansada de ouvir falar dessa maldita escravidão, decidi ler tudo o que pudesse encontrar sobre o tema" (De Jesus 1982, 151).
Ao longo de sua vida, De Jesus catava livros e cadernos jogados em latas de lixo ou freqüentava as bibliotecas de seus patrões, educando-se de uma maneira tão precária quanto sua própria sobrevivência. Saber ler e escrever, apesar das suas difíceis condições de vida, colocou-a de facto numa posição intermediária muito particular. Essa dupla condição de pobre e de escritora, bastante antagônica no Brasil dos anos 1960 e 1970, permitiu que ela olhasse o país de um ponto de vista completamente diferente e com acuidade ("Eu não tinha entrado no mundo diretamente pela sala de recepção, eu tinha entrado pelo jardim..." (De Jesus 1982, 231). Socio-economicamente em margem, mas relativamente integrada ao sistema literário brasileiro, De Jesus poderia ser vista como une outsider within, termo-conceitual com o qual Patricia Collins definiu o lugar marginal ocupado pela intelectual negra dentro da Universidade nos Estados Unidos, marginalidade da qual ela se vale criativamente para elaborar um pensamento feminista negro (Collins 2016, 99). Nesse sentido, o lugar de enunciação ocupado por Carolina Maria de Jesus apresenta-se como uma questão importante para o reconhecimento de uma "perspectiva epistêmica baseada em uma geopolítica do conhecimento outro" (Grosfoguel 2006, 52).
É sobretudo um longo caminho para a conscientização do lugar da mulher negra na sociedade brasileira, aquela que, como afirma Collins, é o outro negativo, ou seja, a antítese do homem branco. Esse é o caminho percorrido por Carolina Maria de Jesus que, desde a infância, percebe sua objetificação social e só se torna sujeito por um processo de autoavaliação que a leitura e a escrita lhe proporcionam. Com efeito, a escrita permite-lhe construir-se enquanto sujeito (Kilomba 2019), a sua identidade narrativa, na medida em que desconstrói as armadilhas do racismo e de um ostracismo social.
Através do ato de autodeterminação que a escrita representa para De Jesus, ela conseguiu dar voz a histórias e personagens ocultados pela História e pela literatura canônica, especialmente como sujeito de enunciação. A escolha de contar o seu universo permite-lhe exteriorizar a expressão da sua experiência. Nesse sentido, sua identidade narrativa pode ser vista como uma identidade comum. Trata-se aqui também da resposta epistêmica dada pela mulher subalternizada pela história a partir de um ponto de vista que reflete suas próprias experiências e as hierarquias a que foi submetida (classe, gênero, raça) (Grosfoguel). Através da representação de sua infância e adolescência, De Jesus, uma mulher letrada e marginal, realiza uma radiografia sócio-histórica bastante inédita do lugar reservado ao negro na sociedade brasileira pós-escravocrata.
2. Diário de Bitita ou a persistência do passado #
« A mon sens, l’esclavage n’avait qu’à peine diminué » (De Jesus 1982, 188)
Três séculos e meio de escravidão constituem uma herança bem ancorada na sociedade brasileira, até porque a integração dos negros nunca foi realmente planejada (Fernandes 2006). Ao contrário, deu origem a práticas cotidianas de exclusão e violência contra eles, apesar das diversas políticas e ideologias forjadas para diluí-los no projeto de construção de um Estado-Nação. A abolição não libertou, afirma Fernandes (2006 62), e o passado escravocrata, inscrito nas relações cotidianas, se expressa de diversas formas. Para o sociólogo, as discriminações presentes nas relações inter-humanas no Brasil não passam de uma “persistência do passado” e colocam em xeque a ideia de uma utópica democracia racial utópica.
Em consonância com a análise que a sociologia tem feito dessa questão, em especial por meio da obra de Florestan Fernandes, Diário de Bitita traz uma poderosa e crítica visão interna do lugar e das condições de vida dos ex-escravos e de seus descendentes, na sociedade mineira durante o primeiros anos da República2. Na ideia de que a memória coletiva é feita de memórias individuais (Halbwachs 1950), Carolina Maria de Jesus tece uma história que constrói, a partir de sua experiência, a representação de um grupo.
Nascida vinte e seis anos após a abolição da escravatura, Carolina Maria de Jesus foi criada pela mãe, Maria Carolina, forra3 e lavadeira, com a ajuda do avô materno, de origem cabinda. Ao longo dos capítulos, vinte e dois no total, acompanhamos os episódios da vida da autora, dos 4 aos 26 anos, um dia antes de sua migração para o Estado de São Paulo, em 1937. A autora e sua mãe migram, em um ritmo muito regular, em busca de trabalho. São ocupações temporárias, como nos mostra seu deslocamento. Ao longo da história, acompanhamos essas duas mulheres que se mudam de cidade em cidade, de fazenda em fazenda. Às vezes querem partir, insatisfeitas com uma vida de exploração. Às vezes, acusadas de roubo ou vítimas da suspeita de seus chefes, são demitidas. Todas essas andanças antecedem a tão esperada ida da autora para a cidade de São Paulo, onde se passa sua primeira obra, Quarto de despejo (1960).
Ao longo do diário escrito nas décadas de 1960 e 1970, a escritora afirma ter percebido, desde muito cedo, que o lugar que ela e seus familiares ocupavam fazia parte de um processo histórico muito mais amplo (« A escravidão era uma cicatriz na alma do negro » (De Jesus 1982, 76)). É portanto com lucidez histórica que ela analisa, já adulta, as consequências da escravidão no cotidiano dos negros no século XX. Desde a mais tenra infância, ela frequenta casas de pessoas abastadas, para quem sua mãe trabalha, e percebe as desigualdades sociais e a discriminação de que os negros são vítimas (« Minha mãe lavava roupa durante o dia e ganhava cinco mil réis. Ela me levava com ela ; eu ficava sentada debaixo das árvores, com o olhar passeando sobre as portas de vidro, vendro os patrões comerem à mesa » (De Jesus 1982, 43). Suas memórias de infância e adolescência trazem à tona questões sócio-históricas que historiadores e sociólogos brasileiros vêm retomando desde a segunda metade do século XX. Com efeito, De Jesus pinta, de forma fragmentada, o retrato da condição de vida da maioria dos ex-escravos e de suas famílias em Minas Gerais na década de 1920. A personagem de seu avô é uma representação clara do processo de exclusão dos negros nessa sociedade pós-escravidão. Libertado pela abolição, Benedito José da Silva continuará trabalhando aos 73 anos (« Meu avô, aos setenta e três anos, ainda extraía pedra lavrada para os pedreiros fazerem os alicerces das casas » (De Jesus 1982, 73)). Como a maioria dos libertos, não recebeu nenhuma compensação e deixou sua condição de escravo para adquirir a de pobre e marginal.
A história de vida da neta de um liberto aborda os pontos fracos da República em formação, ou seja, a exclusão dos ex-escravos do progresso no período pós-abolição (exclusão do mercado de trabalho competitivo por falta de treinamento e qualificação, concorrência com imigrantes, discriminação e violência racial sofridas diariamente, sonho do acesso à propriedade da terra para obter autonomia econômica, etc.). Depois da abolição, não havia espaço para uma cidadania negra. Pelo contrário, apesar das várias promessas, o negro foi submetido a diversas formas de exclusão. Despejado ou forçado a se deslocar para o espaço urbano, não recebeu indenização nem terras para ganhar a vida.
Além disso, o escravo será, gradualmente, substituído pela mão de obra imigrante. Com a universalização do trabalho assalariado no Brasil, como afirma Fernandes (2006, 132-144), as populações escravas libertas não conseguiram competir com os imigrantes recém-chegados e viram-se, da noite para o dia, subjugadas a uma economia de sobrevivência. Carolina Maria de Jesus costuma falar disso desiludida e com ironia. Em sua região plantava-se menos café do que em São Paulo, mas os imigrantes, principalmente de origem italiana e sírio-libanesa, chegavam com força para trabalhar nas lavouras de café ou para o comércio.
A desigualdade de oportunidades entre imigrantes e ex-escravos levanta uma questão central para a República no Brasil : a da reforma agrária. O acesso à propriedade era feito de maneira seletiva, beneficiando apenas ao estrangeiro, afim de atrair mais mão de obra para o Brasil. Com isso, fora as terras ocupadas pelos escravos quilombolas, nenhum lote de terra foi concedido às populações descendentes da escravidão. Ter terra para plantar é um sonho que De Jesus nos conta ao longo da história e que ela só realizará no final da vida quando comprar, com seus direitos autorais, sua casa em Parelheiros (« Eu tinha inveja de quem tinha terra e podia plantar, sabendo muito bem que aqueles que a amavam não a possuiam... Mas meu sonho não era morrer até que eu adquirisse minha própria gleba » (De Jesus 1982, 173)).
Retornar à sua região de origem (muitas vezes o Nordeste), continuar trabalhando para seu antigo dono ou migrar para as cidades grandes, tais eram as opções oferecidas ao escravo livre. No entanto, o direito à terra poderia ter sido o meio de sua emancipação econômica. De Jesus e sua mãe são a prova dessa incerteza quanto ao seu destino. Frequentemente migrando, vagam em busca de trabalho para sobreviver : cozinheiras, domésticas, babás, etc. Cada serviço prestado dá lugar a uma forma de exploração : salário reduzido ou não pago, expulsão, insultos racistas, prisões arbitrárias, violência, etc. A instabilidade de seu emprego demonstra tanto a ausência de qualquer contrato quanto uma relação entre patrão e empregado análoga àquela entre mestre e escravo.
Suas condições de vida são muito precárias e, no trabalho, muitas vezes o termo « pobre » é sinônimo de « negro ». O uso de um ou do outro é de igual frequência, o que nos leva a acreditar em uma sobreposição entre condição racial e condição social. O agravamento dessa situação é percebido de forma perspicaz e precisa por De Jesus, que denuncia a ausência de vontade política de integrar, de fato, os afrodescendentes à sociedade brasileira. Ao contrário, ao sair da escravidão, os ex-escravos ficavam abandonados e sem meios de se construir como cidadãos : « Quando um negro ficava velho, ele ia pedir dinheiro, pedia dinheiro no interior ; os que podiam mendigar na cidade eram apenas os mendigos oficiais », « Eram livres mas pobres » (De Jesus 1982, 43). Reflexões que resumem lucidamente o lugar reservado ao ex-escravo na sociedade brasileira : sujeito a uma liberdade condicionada pela pobreza e exclusão. Além disso, a não aceitação de sua condição e o esforço para sobreviver podiam assumir diversas formas (delinquência, revolta, mendicância, alcoolismo etc.) que, suspeitas, eram vigiadas e repreendidas pelo Estado com violência (Nascimento 2016).
Fernandes nos lembra que a violência contra os negros é comum desde a Abolição da escravatura e isso para coibir qualquer tentativa de reivindicação contra sua marginalização social. A violência perpetrada era arbitrária, desproporcional. A autora expressa um sentimento de injustiça, sem dúvida percebido na idade adulta e depois de ter passado por todas as fases de sua marginalização social (de migrante a favelada), que rapidamente adquire a certeza de que o negro é vítima de diversas formas de preconceito em uma sociedade racista. De Jesus toma consciência desse fato a partir de sua experiência, o racismo sendo visivelmente a causa das violências sofridas (« Ter a pele branca era um escudo, um salvo-conduto » (De Jesus 1982, 69)). Começando pela violência policial. Em Sacramento, na década de 1920, os afrodescendentes, principalmente os homens, eram perseguidos pela polícia por serem considerados os principais suspeitos em diversas situações (« Os negros tinham medo da polícia que os perseguia constantemente (…) Mas que liberdade é essa quando é necessário fugir das autoridades como se fossem culpados de algum crime ? » / « Quando havia um crime ou um roubo, os negros eram sempre suspeitos » (De Jesus 1982, 73/113). Carolina de Jesus e sua mãe também são vítimas de uma violência inigualável e arbitrária, acusadas de furto e bruxaria (em « A Cidade »). Observando que esta última acusação se deve ao fato de que De Jesus sabe ler. Presas, elas serão submetidas a humilhações e a violências físicas.
Através de seu olhar geolocalizado, a mulher negra faz um capítulo completo na narrativa de De Jesus. Várias intelectuais negras politizadas analisaram inclusive o papel que lhes foi reservado na sociedade brasileira em relação ao legado do processo colonial (Gonzalez, Carneiro, Collins). De fato, ao longo da história, a mulher negra foi, ao mesmo tempo, masculinizada e hipersexualizada. Como demonstra Collins, ao contrário da mulher branca, principalmente das classes sociais mais ricas, a mulher negra sempre trabalhou : primeiro, como escrava ; depois, como empregada doméstica, às vezes responsável pela manutenção da casa (Fernandes). Carolina Maria de Jesus e sua mãe são um exemplo disso. Movimentam-se de acordo com as promessas do trabalho informal e mal remunerado e vivenciam pessoalmente as dificuldades relacionadas à cor da pele e à classe social, a condição étnica e social se sobrepondo.
As mulheres negras são alvo de outras formas de violência. Por um lado, a exploração do seu trabalho no contexto doméstico. Pela sua realidade ou de outras mulheres negras e pobres, Carolina Maria de Jesus testemunha a exploração do trabalho das empregadas domésticas por famílias ricas e brancas : « As mulheres pobres não tinham tempo para cuidar de suas casas ; pela manhã, a partir das seis horas, já deviam estar na casa da patroa para acender o fogo e fazer o café » (De Jesus 1982, 48)). Neste trecho todo, uma gradação interessante é realizada pela autora entre condição social e cor da pele : « Mulheres pobres », « domésticas », « negras », (Idem, 48). Isso nos leva a ver uma interseccionalidade nas relações de trabalho. Muitas vezes humilhadas e vítimas de discriminação racial, as empregadas negras acabam aceitando, por necessidade, a subalternidade imposta pelo patrão : « Eram inúmeras mulheres querendo trabalhar, mas poucos lugares para trabalhar. A patroa era tratada como uma santa no altar » (De Jesus 1982, 49). Elas tinham que ser estratégicas para sobreviver : « Os restos podiam ser levadas para casa (…). Para o jantar, as cozinheiras faziam muito mais do que o suficiente, para garantir que houvesse restos » (De Jesus 1982, 48-49).
Por outro lado, enquanto a violência policial afeta principalmente a população masculina, a violência sexual é de gênero e, na maioria das vezes, atinge jovens negras. Essas práticas são cotidianas e refletem a coisificação da mulher negra que perdurará para além da escravidão e da miscigenação forçada : « Mas se, por desgraça, a cozinheira tivesse uma filha, ai! a pobre negrinha a usava para seu noviciado sexual » (De Jesus 1982, 50). Uma violência tanto mais dissimulada quanto também mascarada por práticas de assistência dos ricos aos pobres que a autora denuncia : « - Cala a boca ou eu mando te prender / - Sim, para que o teu filho faça sacanagem comigo como ele faz com as meninas que você recolhe! Melhor ir para o inferno do que para sua casa, Doutor Brand » (De Jesus 1982, 45). De fato, outras formas de abuso e de exploração do trabalho dos afrodescendentes, que persistem na sociedade brasileira, são denunciadas, como o apadrinhamento ou a adoção de filhos pobres, órfãos ou ilegítimos. Ela repetidamente alude àquelas crianças negras adotadas por famílias de classe média ou ricas que, na verdade, prestam serviços domésticos para elas sem remuneração (« Era proibido ter escravos, então os Alvim, uma das famílias ricas da cidade, levavam crianças negras pequenas para criá-las » (De Jesus 1982, 87)).
A violência é sobretudo a do racismo que, segundo Sílvio Almeida (2020), naturalizou a condição de subalternidade negra no Brasil por meio de um sistema econômico, político e jurídico. Através do racismo, de fato, outras formas de violência foram justificadas. De Jesus testemunha isso repetidamente. Ela admite ter sido exposta desde a infância a formas de racismo por meio das humilhações verbais de seus colegas de classe (« Eu sabia que era negra por causa das crianças brancas ; quando discutiam comigo, diziam : Pretinha, negrinha fedorenta ! » ( De Jesus 1982, 113)) ou de seus patrões (« Sabe, Carolina, você vem trabalhar na minha casa e, quando eu for para Uberaba, compro um remédio para te embranquecer. Também vou arranjar outro para o teu cabelo ficar liso... e depois vou arranjar um médico para arrumar o teu nariz... » (De Jesus 1982, 159). Assim, em muitas situações cotidianas o racismo aparece na superfície criando situações traumáticas (Kilomba 2019). No entanto, a cor da pele é depreciada em vários níveis. Numa escala racial, será um valor de medida entre brancos e negros, entre negros e mestiços. De fato, a autora nos mostra o carácter insidioso de um racismo que, ao longo dos séculos, acabou por ser introjetado pelos negros e mestiços, sob a forma de auto-inferiorização.
A relação com a cor da pele é encenada em diversas situações. Começando com uma forma de autodepreciação ou a atração por valores etnocêntricos. Além disso, suas relações familiares dizem muito sobre as relações sócio-étnicas. Ao contrário de sua madrinha mestiça e pobre, sua madrinha branca representava para a criança Carolina Maria de Jesus a possibilidade de ter acesso a outro modo de vida, menos miserável, com o qual ela sonhava. No entanto, ela olha para as relações estabelecidas entre brancos, mestiços, negros durante sua infância com desilusão e denuncia uma forma de apartheid racial dentro de sua família e da sociedade mineira (« Em casa de mulato, preto não entra ») ( De Jesus, 1982 : 86). Nessas relações inter-raciais e familiares, a repressão à origem negra e o desejo de branqueamento social assumem o controle e refletem a introjeção de um modelo racial valorizado (Nascimento 2016, 153-159). O racismo é um modus operandi que, de fato, pontua e intensifica um cotidiano de exclusão e carência.
Além de sua qualidade estética, a singularidade da obra de De Jesus se deve à narração de uma trajetória exemplar por uma voz narrativa pouco representativa no campo literário brasileiro (Dalcastagnè 2008, 96). A experiência vivida que ela compartilha com seu leitor e o desejo de resgatar os vestígios de uma memória familiar esquecida pela história alcançam, ao final, uma leitura reveladora da história brasileira, pela voz daqueles que ficaram fora do processo de modernização. Apesar de sua insuficiente escolarização, Carolina Maria de Jesus afirma ter tido desde muito cedo consciência desse fato (« Eu, com apenas cinco anos, estranhava estas cenas antagónicas » (De Jesus 1982, 78)) e ter podido, por experiência, compreender os mecanismos da sociedade de classes encoberta pelo ideal da democracia racial. Sua leitura de sua história e das relações sócio-étnicas em Minas Gerais na primeira metade do século XX é uma visão penetrante que pode nos ajudar a compreender a complexidade do ostracismo social e os mecanismos utilizados pelos afrodescendentes para se adaptarem à sociedade de classes. Além disso, e com uma perspectiva transnacional, um diálogo entre a obra de Carolina Maria de Jesus e de outros autores afro-americanos ainda está por ser feito e pode nos permitir situá-la em uma perspectiva literária e histórica muito mais ampla.
Referências #
Bourdieu, Pierre. 1986. « L’illusion biographique ». Actes de la recherche en sciences sociales, 62-63 (junho) : 69-72.
Collins, Patricia Hill. 2016. « Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro », Revista Sociedade e Estado, 31, n°1 (janeiro/abril): 99-127.
Dalcastagnè, Regina. 2008. « Vozes nas sombras : representação e legitimidade na narrativa contemporânea ». In Ver e imaginar o outro : alteridade, desigualdade, violência na literatura brasileira contemporânea, 78-107. Belo Horizonte: édições Horizonte.
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Termo construido por Luciana Hidalgo para definir a escrita de Lima Barreto, em Diário do hospício, como sendo produzida por um eu em estado de urgência ou em uma situação-limite. A propósito, ver : Luciana Hidalgo, « A loucura e a urgência da escrita », ALEA VOLUME 10 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2008. ↩︎
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Em sua tese de doutorado, Mário Augusto Medeiros da Silva já havia proposto um diálogo entre o pensamento de Florestan Fernandes, sobre o lugar do negro na sociedade paulista, e a obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. ↩︎
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Libertada pela lei abolicionista de 28 de setembro de 1871, a Lei do Rio Branco ou Barriga Livre, que concedeu liberdade aos filhos nascidos de mãe escrava a partir da data de promulgação da lei. ↩︎