Segunda parte - circulações intelectuais
A receção pós-colonial e decolonial de Vieira : usos e significados das apreciações controversas sobre a sua vida e a sua obra
Resumo
O Padre António Vieira (1608-1697), classificado no livro Mensagem, de Fernando Pessoa como o “Imperador da Língua Portuguesa”, e a sua obra, têm tido, ao longo dos últimos 4 séculos, uma receção muito controversa. Vieira tem-se tornado recorrentemente uma figura-bandeira e figura-símbolo de combates culturais, ideológicos, literários, projetos de sociedade em diferentes contextos. O nosso artigo pretenderá analisar criticamente, à luz de uma hermenêutica dos contextos, a receção controversa de Vieira e a sua reconversão como figura-bandeira nos debates pós-coloniais e decoloniais.O Padre António Vieira (1608-1697) e a sua obra têm tido, ao longo dos últimos quatro séculos, uma receção muito controversa, em que se podem distinguir duas correntes hermenêuticas fundamentais. Por um lado, uma corrente filovieirina, que relevou a sua trajetória como missionário, conselheiro e embaixador, reconheceu amplas virtudes humanitárias na sua ação e no seu pensamento político, assinalou o seu génio literário ou se deixou inspirar pela sua projeção proto-ecuménica de uma idade utópica do Quinto Império. Por outro lado, uma corrente antivieirina, que se foi manifestando em diferentes andamentos e por diferentes motivos: afrontou o pregador, ainda no seu tempo, ora por motivos institucionais, contrapondo-se às posições da Companhia de Jesus, ora por razões ideológicas, combatendo as suas propostas de reforma da Inquisição e de instituições do Estado, e repudiando a sua defesa dos Cristãos-Novos e a sua crítica a práticas coloniais, como o recurso intensivo a mão obra de obra escravizada; ora também por razões literárias, enquanto autor de acento barroco; quer ainda por algumas proposições da sua obra profética, que alguns, mesmo dentro da sua própria Ordem, acusaram de delirante.
A avaliação divergente e nada consensual em torno de Vieira ter-se-á, talvez, atenuado um pouco na segunda metade do século XX e inícios do século XXI, com expressão maior no quadro das comemorações do III centenário da morte, em 1997, e do IV centenário do nascimento, em 2008, no âmbito dos quais foi objeto de diversos estudos e homenagens. Entre estas homenagens, refira-se, por exemplo, aquela que foi prestada pela Assembleia da República Portuguesa em 1997, com o louvor unânime de todos os partidos, circunstância em que o então Presidente da República, Jorge Sampaio, tentou conciliar admiradores e detratores com palavras emblemáticas: “Vieira, esse povo de palavras”, “foi grande até nas suas contradições.” (cf. Franco et al 2016)
Todavia, esta aparente ou provisória superação da controvérsia em torno de Vieira não evitou o debate, no quadro das hermenêuticas póscoloniais e decoloniais que nos últimos anos vieram a público com maior contundência. Esta reemergência de uma corrente crítica de Vieira tornou-se mediática, nomeadamente nas sociedades portuguesa e brasileira, em torno de lugares de memória erigidos a Vieira e da avaliação do seu papel enquanto religioso e político comprometido com o projeto colonial e imperialista português, sublinhando as suas posições em relação à escravização de pessoas negras e o seu projeto proselitista e eurocêntrico de conversão das populações ameríndias, entre outros aspetos da sua ação e pensamento.
Com efeito, Vieira tem-se tornado recorrentemente, ao longo destes séculos, uma figura-bandeira e figura-símbolo de combates culturais, ideológicos, literários, projetos de sociedade em diferentes contextos. A breve reflexão que propomos refere-se a algumas expressões mais recentes dessa dinâmica, procurando prestar contributos para um uso mais esclarecido e emancipador das representações de Vieira e do império no espaço público.
Vieira no epicentro hodierno das polémicas póscoloniais e decoloniais sobre a questão da escravatura #
No dia 11 junho de 2020, a estátua dedicada a Vieira, situada no largo Trindade Coelho, em frente à igreja de São Roque, no centro de Lisboa, foi alvo de uma ação política que suscitou um amplo debate junto da sociedade portuguesa. De noite, o rosto e o peito da efígie de Vieira foram manchados com tinta vermelha; no peito de cada uma das três representações de crianças índias, foram desenhados corações e, no pedestal, foi escrito o mote “Descoloniza”. A oposição crítica a esta estátua ganhara força no quadro do movimento internacional de vandalização e derrube de estátuas de figuras históricas ligadas ao passado colonial e esclavagista. Este movimento, que se globalizou, teve origem nos EUA, e obteve novo impulso após o assassinato de George Floyd pela polícia, em Minneapolis.
Cerca de três anos antes, em outubro de 2017, a estátua tinha sido já alvo de polémica, após uma ação pacífica de protesto, organizada por um grupo denominado “Descolonizando”, que previa a deposição de flores e a leitura de trechos de sermões de Vieira junto da estátua. No texto da convocatória, lemos: “Não aceitamos essa estátua. Com a colaboração da Igreja, mais de 6 milhões de africanos foram escravizados pelos portugueses no tráfico transatlântico. O Padre António Vieira era um esclavagista seletivo. A colonização portuguesa no final do século XVI já tinha dizimado 90% da população indígena. A evangelização jesuíta foi a maior responsável pelo etnocídio ameríndio.” A ação acabaria por não ser levada a cabo integralmente, devido à intervenção violenta de membros da extrema-direita, que alegaram ter agido em proteção da estátua.
Num comunicado emitido após estes acontecimentos, o coletivo Descoloniza, apresentando-se como “grupo de cidadãos apartidário, constituído por vários investigadores, professores e artistas de diferentes nacionalidades” “em diálogo com gestos que têm vindo a tomar forma globalmente (#decolonizethisplace)”, afirma que não era seu intuito destruir a estátua e que não pretendiam manifestar-se contra a figura de Vieira, mas sim contra “a forma como Vieira é representado e discutido no espaço público”. O coletivo apelava, assim, à promoção de uma perspetiva que tivesse em conta a “complexidade da figura histórica” de Vieira, também enquanto promotor da “escravatura sistemática de africanos e [d]a conversão forçada de indígenas sul-americanos”.
Não nos ocuparemos aqui de uma reconstituição do debate público desencadeado por esta ação e pela ação de junho de 2020 (Lopes 2020; Santos 2022). Assinalamos, porém, porque é da receção de Vieira que tratamos, que esta discussão acerca das formas de representação do império português no espaço público se traduziu, em muitas das peças de imprensa que constituíram esta polémica, numa espécie de tribunal do “desempenho ético” de Vieira, ora imputando-lhe, ora isentando-o de ter participado nas expressões mais violentas do colonialismo.
Esta centralidade de Vieira na ponderação da memória do império parece ligar-se a uma tradição de representação do pregador que se prolonga, inclusive, no exercício que o escultor Marco Fidalgo, o autor da estátua, levou a cabo.
Na primeira biografia de Vieira, Vida do apostólico padre António Vieira da Companhia de Jesus, chamado por antonomásia o grande (Barros 1746), foi estabelecida a matriz de abordagem que viria a ser reproduzida durante séculos. Um dos aspetos a ter em conta é que a gravura de Carlo Grandi, que nesta publicação antecede a narrativa dos feitos de Vieira, constitui um modelo iconográfico por diversas vezes reproduzido. Nela, Vieira surge de pé, ao centro, ladeado por dois índios que, um de joelhos e outro sentado, escutam a sua pregação. Este modelo e algumas das suas variações foram já alvo de análise, antes da inauguração da estátua do largo Trindade Coelho (Ventura 2014) e a propósito da polémica que ela desencadeou (Xavier 2020; Santos 2022). Resumidamente, o papel atribuído às figuras nele representadas é mais ou menos óbvio, deprimindo a agencialidade dos indígenas, que ocupam uma posição lateral e submissa em relação ao missionário, que surge erguido, paternal e dominante, em posição central.
Coincidente com a iconografia que o acompanha, o relato escrito por André de Barros dos acontecimentos do Maranhão, entre 1653 e 1661, que ocupa o final do primeiro livro e a totalidade do segundo, segue a ambiência comum nas narrativas inacianas da Modernidade, de acordo com a qual o missionário é o motor de uma epopeia de transformação do mundo, nas palavras de André de Barros, uma “guerra contra o inferno”. A poderosa escrita de Vieira reforçava também essa perspetivação dos acontecimentos. Em causa estaria uma contenda em que a justiça e a piedade cristã se opunham à crueldade e à cobiça dos colonos.
Significativamente, à semelhança do que o grupo Descolonizando denuncia no seu comunicado, os termos mais elementares desta narrativa, segundo os quais Vieira lutou humanisticamente pela liberdade dos índios face aos apetites esclavagistas dos colonos, são ainda hoje reproduzidos em boa parte dos manuais da disciplina de Português do 11.º ano de escolaridade, para contextualizar historicamente o famoso “Sermão de Santo António aos Peixes”.
De facto, a historiografia do século XX não foi imune a essa matriz de leitura dos acontecimentos do Maranhão como uma contenda entre a Companhia de Jesus e os colonos. João Lúcio de Azevedo, na sua História de António Vieira (1918), procurando penetrar a psicologia de Vieira, identifica o período da missão no Maranhão (“O Missionário”, p. 195 e ss.) como uma fase de específica exaltação religiosa, em que melhor se notariam as virtudes morais de Vieira. António Sérgio e Hernâni Cidade, apesar do seu manifesto laicismo e antisseiscentismo, render-se-iam também à figura do missionário pugnador pela justiça e liberdade, nos comentários que elaboraram para o volume III das Obras várias: em defesa dos índios (Sérgio et al. 1951).
António José Saraiva, na reconstituição dos eventos do Maranhão que elaborou no seu livro História e utopia. Estudos sobre Vieira (1992), empreendeu um esforço consistente para se emancipar dessa matriz, complexificando os termos da contenda entre jesuítas e colonos. Todavia, só em privado parece ter expressado clara e rotundamente o seu questionamento. Numa carta a Luísa Dacosta, lemos: « Neste momento, trato do Padre António Vieira e da escravatura. Como sabe, o Vieira defendia a liberdade dos Índios, mas propunha a escravização dos Negros do outro lado do Atlântico. Porquê? Porque os Jesuítas se propunham constituir um grande império na América do Sul e, para isso, precisavam de dominar os Índios, ao passo que não tinham projetos relativamente à África » (Saraiva 2011, 99). As palavras de Saraiva problematizavam, assim, a visão glorificadora de Vieira: em causa estava não só um plano político e espiritual para o Brasil, que implicava a liberdade das populações indígenas, mas também a pesada contrapartida deste projeto, a escravização de pessoas negras, tendo em vista a conservação do império e a satisfação das necessidades de mão-de-obra por ela impostas. Nem Charles R. Boxer resistiria ao espanto perante esta contradição, afirmando, no seu ensaio crítico Relações Raciais no Império Colonial Português (1415-1825), que “a atitude de Vieira é tudo quanto há de mais paradoxal, porque, diferentemente dos seus contemporâneos, não acreditava na superioridade inata do homem branco sobre o negro” (Boxer 1977, 102).
Muito antes de Saraiva ou de Boxer, existia já uma tradição, de matriz pombalina, que acusava Vieira e a Companhia de Jesus da prossecução de um plano de controlo político e económico da América do Sul e de imposição sobre as populações indígenas de formas de escravatura mais sub-reptícias (Franco 2005). Todavia, só em meados do século XX parece ter havido condições políticas e culturais para que a posição política de Vieira no que respeita à escravização de pessoas negras fosse vista como “paradoxal” pelos estudiosos. Esse paradoxo supõe que haveria uma contradição eminente entre o propósito da liberdade dos índios e a defesa da escravização de pessoas negras. Supõe também que as concessões feitas por Vieira à escravização de pessoas negras destoavam dos vários trechos em que o pregador se mostrou compassivo em relação ao seu sofrimento e condenou as violências sobre elas infligidas. Em suma, prevê a adequação do pensamento de Vieira a uma lógica humanitária contemporânea que dificilmente se poderá verificar nos seus escritos e, sobretudo, na sua prática.
A perspetivação de Vieira como figura paradoxal, ou que veiculava posições contraditórias ou incoerentes, parece, na verdade, dizer mais sobre a variedade dos usos políticos e culturais que foram sendo feitos acerca da sua obra a posteriori do que sobre o seu pensamento e a sua vida. Estes usos supõem um deslocamento ou uma interpretação parcelar da sua obra ou da sua biografia, adequando-as anacronicamente a um propósito ideológico.
Num artigo de opinião publicado em 2017, a cantora e ativista Capicua apresenta, significativamente, a contenda entre defensores e críticos da estátua de Vieira como uma espécie de “conflito de anacronias”: “PAV defendeu os índios, mas não os negros, e defendeu os primeiros, forçando a sua evangelização. Não foi o único e pode até ter sido o ‘menos mau’, mas se há quem queira homenageá-lo pelas coisas boas que fez, parece-me saudável que haja também quem sublinhe o outro lado. Sobretudo perante a falta de reconhecimento institucional da dívida histórica portuguesa para com os povos que escravizámos e explorámos por séculos. Se é assim tão anacrónico reconhecer oficialmente a responsabilidade histórica de Portugal no tráfico de escravos, não será igualmente anacrónico fazer uma estátua de um missionário jesuíta, empunhando uma cruz em vade retro, com três indiozinhos andrajosos em volta, em pleno 2017? Se não há um memorial que seja (quanto mais museus ou monumentos) a lembrar os seis milhões (!) de escravos que Portugal forçou a embarcar para o Brasil e os índios dizimados para sustentar o nosso império colonial, será legítimo fazer mais uma homenagem a um agente da nossa megalomania ultramarina?” (Capicua 2017)
O grupo Descolonizar, no seu comunicado, denuncia também um deslocamento hegemónico da figura de Vieira, ao identificar a estátua do largo Trindade Coelho como uma “fantasmagoria colonial no espaço público, correspondendo a uma visão lusotropicalista da história que, por sua vez, apresenta o colonialismo português como um projeto benevolente”. Este uso da obra de Vieira não foi e não tem sido, de todo, raro (Almeida 2022). Mas, se Vieira parece ter dado argumentos funcionais àqueles que procuraram e procuram legitimar a violência colonial, também conseguiu fornecê-los, em abundância, àqueles que a condenam. Se é certo que Vieira foi um intelectual, nascido na Europa e formado numa instituição colonial, o Colégio da Baía dos Jesuítas, comprometido com planos de ação estruturantes do projeto colonial português (evangelização, conquista e administração de territórios, escravização à luz do direitos da guerra), por outro lado, revelou-se muitas vezes disruptivo, tecendo críticas a diversos aspetos do sistema colonial.
Nesta esteira, são emblemáticos da crítica de Vieira às condições de vida dos escravos alguns sermões do Rosário, em particular os sermões XIII, XX e XXVII (Vieira 2013-2014), em que o pregador denuncia frontalmente o tratamento desumano dado pelos senhores dos engenhos de açúcar aos seus trabalhadores escravizados, comparando as suas dores aos sofrimentos de Cristo. Estas críticas acrescentam uma página num longo processo histórico de formulação de direitos naturais, consciência que, mais tarde, se viria traduzir em proclamações mais enfáticas e com força de lei.
Com efeito, diversos dos seus sermões foram concebidos como instrumento de uma crítica social, política e económica, contra os que usavam a vantagem da condição social e do poder colonial delegado pelo Rei não para servir as comunidades, mas para servir-se, do que é eloquente; entre outras, esta passagem do Sermão da Visitação de Nossa Senhora: “Muitos transes destes tens padecido, desgraciado Brasil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos edificam Palácios com os pedaços de tuas ruínas, muitos comem o seu pão, ou o pão não seu, com o suor do teu rosto: eles ricos, tu pobre; eles salvos, tu em perigo; eles por ti vivendo em prosperidade, tu por eles a risco de expirar.” (Vieira II, VII, 97-98). O pregador denuncia, assim a dinâmica do colonialismo: as potências colonizadoras que, através dos seus agentes, exploram, em seu benefício, as riquezas dos povos colonizados, não contribuindo para o seu bem-estar, mas antes empobrecendo-os e oprimindo-os.
No entanto, como argutamente interpretou António José Saraiva, “apesar da severidade com que julga a brutalidade dos colonos, Vieira não se afastou da doutrina que era a sua – e a de toda a gente, cinquenta anos antes: não se pode pôr em questão a legitimidade da escravatura dos negros na América.” Importa, para compreender a posição de Vieira, “situá-lo no contexto histórico e da doutrina vigente sobre o esclavagismo.” (Saraiva 1992, 62).
Tanto as posições que valorizam o testemunho e as denúncias da violência colonial feitas por Vieira, no quadro da sua visão reformadora das práticas, como aquelas que veem no pregador um protagonista da opressão imperial e um claro inspirador das suas extensões contemporâneas, parecem depender de deslocamentos resultantes da perspetivação de Vieira como figura paradoxal.
Para uma melhor compreensão da figura e do pensamento de Vieira, é necessário ter em conta aspetos específicos não só da mentalidade do seu tempo, mas também daquilo a que se poderia chamar o seu “sistema de pensamento”. Este esforço foi amplamente desenvolvido por Alcir Pécora, no seu Teatro do Sacramento, onde se propõe percecionar a obra de Vieira à luz de uma unidade retórico-político-profética que elide as chamadas “contradições” ou “paradoxos” de Vieira.
Entre as várias virtudes que encerra, esta perspetiva poderá despertar-nos para a importância fulcral de algumas componentes mais exuberantes do pensamento de Vieira que fazem dele um autor, dir-se-ia, muito pouco “contemporâneo”, e que colocam em evidência o anacronismo dos diferentes deslocamentos. Entre estas componentes exuberantes, poderíamos enunciar, por exemplo, a sujeição do pensamento de Vieira a uma teleologia histórico-religiosa, que o próprio expõe mais ou menos detalhadamente nos seus escritos proféticos. Esta supõe algumas mediações que, sob uma perspetiva humanitária contemporânea, seriam muito mais do que problemáticas, como a destruição bélica do Islão e a conversão de todos os restantes humanos à Cristandade, sob a égide da Coroa Portuguesa e da Companhia de Jesus. Supõe também uma interpretação profética das Escrituras, transpondo-as, de forma mais ou menos literal, para a história. Assim se compreende, por exemplo, que ao mesmo tempo que Vieira supunha a igualdade de todos os humanos, enquanto “filhos de Deus”, tenha advogado, interpretando Génesis 9, 27, que as populações africanas, enquanto alegadas descendentes de Canaã, deviam a sujeição aos portugueses, supostos descendentes de Jafé por intermédio de Tubal (Vieira 2014 III 2, 560).
Por fim, tomar em conta a teleologia histórico-religiosa do pensamento de Vieira permite-nos também compreender o sentido soteriológico que ele atribuía à condição do escravo: “Não há Escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo, com o que creio, e não posso entender que Deus, que criou estes homens tanto à Sua imagem, e semelhança, como os demais, os predestinasse para dois Infernos, um nesta vida, outro na outra. Mas quando hoje os vejo tão devotos, e festivais diante dos Altares da Senhora do Rosário, todos Irmãos entre si, como Filhos da mesma Senhora, já me persuado sem dúvida que o cativeiro da primeira transmigração foi ordenado por Sua misericórdia para a liberdade da segunda.” (Vieira II 9, 341-342).
Em suma, entre os fundamentos e os horizontes do pensamento e da sensibilidade de Vieira, enquanto religioso e erudito do século XVII, e aqueles que orientam os cidadãos portugueses e os brasileiros no século XXI, mesmo que tenhamos em conta ainda um contínuo histórico e um legado cultural, existe uma distância considerável, quase insuperável.
A observação do pensamento de Vieira na sua unidade, tendo em conta também estas componentes exuberantes, não visa, porém, o isolamento do pregador seiscentista como um elemento “alienígena”, com o qual seria impossível manter qualquer comunicação nos nossos dias, mas sim uma melhor consciência acerca dos deslocamentos concebidos em relação à sua obra. Aliás, as ideias proféticas de Vieira ecoaram em diversos autores, ao longo do século XX, como em Fernando Pessoa que, na sua Mensagem, denominou Vieira “Imperador da Língua Portuguesa” (Pessoa 2002, 80), ou em Agostinho da Silva, que ensaiou uma reelaboração pacífica da ideia de Quinto Império (Silva 2002, 249-260), ou ainda em Natália Correia, que idealizou a idade quintoimperialista modelada pela assunção dos valores femininos (cf. Franco et al. 2005). A atenção a estas componentes do pensamento de Vieira alerta-nos para o substrato mítico e escatológico subjacente às reformulações ou recriações da ideia de império português, por mais subtis ou benévolas que elas procurem ser. Nesse sentido, uma perspetivação poscolonial de Vieira poderá atender à persistência destes elementos míticos e suas reformulações em discursos e manifestações culturais e políticas da contemporaneidade, ensaiando a sua denúncia e questionamento crítico.
Por outro lado, uma maior consciência do pensamento de Vieira na sua unidade ou integralidade, propósito que talvez seja compaginável com aquele que o coletivo Descoloniza propõe no seu comunicado, ao afirmar ser “urgente expor os atuais e futuros cidadãos deste país à complexidade da escrita vieirina”, permitirá também abrir caminho para um necessário descentramento em relação à figura de Vieira.
Alguns trabalhos recentes relativos aos acontecimentos do Maranhão (1653-1661) (Chambouleyron et al. 2009; Ventura 2014) têm chamado atenção para um excessivo centramento das abordagens na figura de Vieira e para a necessidade de serem tidos em conta outros agentes em campo, não apenas os mais visíveis na documentação, mais ou menos partidários da hoste indiferenciada dos «colonos», mas também aqueles que mais raramente se expressam em primeira pessoa nos papéis que chegaram até aos nossos dias, como é o caso dos índios e dos negros. Esta perceção poderá, certamente, estender-se também aos discursos acerca do século XVII português e brasileiro, onde Vieira manteve, durante séculos, uma compreensível hegemonia. Este movimento de descentramento em relação às “grandes figuras” da história e da cultura, amplamente desenvolvido ao longo das últimas décadas, converge com o imperativo urgente de pensar condições para uma nova escuta atenta e uma real integração, não só por historiadores, mas também por toda a sociedade contemporânea, das vozes daqueles que durante séculos foram silenciados.
Conclusão #
O debate respeitante à imposição da estátua de Vieira num dos largos mais emblemáticos da capital portuguesa e aos consequentes atos de contestação indicia uma crescente sensibilidade da opinião pública portuguesa para as questões referentes às formas hegemónicas de representação do império no espaço público e às relações que elas mantêm com fenómenos como o racismo, a xenofobia e outras formas de exclusão. Estes tímidos progressos dependeram não só da acumulação de lutas sociais e de uma maior taxa de escolaridade, entre outros progressos permitidos por décadas de democracia, mas também do impulso e da articulação com movimentos internacionais à escala global.
O caso da estátua do largo Trindade Coelho, também pelos seus contornos – a iniciativa em si, a conceção da estátua, a subsequente contestação, bem como os termos e os argumentos do debate subsequente –, coloca em evidência que muito resta por fazer não só no que diz respeito ao conhecimento científico relativo à história do império e das suas representações, mas sobretudo no que concerne à transmissão do conhecimento historiográfico desenvolvido ao longo das últimas décadas (Cardim 2021). Temos consciência de que esse conhecimento não é nem poderá vir a ser produzido e divulgado ideologicamente neutro; mas, desenvolvendo e testando abordagens e metodologias adequadas às especificidades do império colonial português e das suas representações posteriores, poderá contribuir para uma definição mais objetiva e lúcida dos termos do debate.
Ponderando a projeção pública da obra e da figura de Vieira, propomos uma abordagem que enfrente a sua complexidade e a sua especificidade, superando as abordagens que se demoram no juízo ético e que procuram adequar a figura do pregador inaciano a um modelo de herói humanista ou de vilão. Esta postura nem sempre nos libertará do espanto, da admiração ou do horror, perante diversas linhas ou feitos de Vieira, mas abrirá caminho a uma compreensão mais vasta da sua obra e daquilo em que consistiu o império português, permitindo usos mais esclarecidos e emancipadores destes legados.
Referências #
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